sexta-feira, 25 de junho de 2021

São João Batista

 João Batista: Espiritualidade do “santo popular” forjado na radicalidade, determinação e humildade

«Ao oitavo dia vieram para circuncidar o menino e queriam chamá-lo com o nome do seu pai, Zacarias. Mas a sua mãe intervém: Não, chamar-se-á João. Disseram-lhe: Não há ninguém da tua parentela que se chame com esse nome. Então perguntaram com gestos a seu pai como queria que se chamasse. Ele pediu uma tabuinha, e escreveu: João é o seu nome. Todos ficaram admirados. Nesse mesmo instante abriu-se-lhe a boca e desatou-se-lhe a língua, e falava bendizendo Deus. Todos os seus vizinhos foram tomados de temor, e por toda a região montanhosa da Judeia se discorria sobre todas estas coisas. Aqueles que o escutavam, conservavam-no no seu coração: Quem será esta criança?, diziam. Verdadeiramente a mão do Senhor estava com ele» (Lucas 1).

Do silêncio de Zacarias nasce a última palavra profética da Antiga Aliança, da esterilidade de Isabel nasce o anunciador da vida perfeita oferecida por Deus ao seu povo. Nos Evangelhos a figura de João e a sua mensagem são esboçados com os mesmos traços dos de Cristo, precisamente segundo o princípio judaico segundo o qual «o enviado é como aquele que envia».

Não é por acaso que a liturgia da Palavra de 24 de junho aplica a João o segundo canto do Servo do Senhor (Isaías 49), que a tradição cristã usou sempre em chave messiânica e cristológica. O Batista é o “servo” de Deus e, portanto, do seu Messias (Ungido).

Como recorda Paulo no seu discurso em Antioquia da Pisídia, João proclama: «Eu não sou aquele que vós pensais que eu seja! Eis que vem depois de mim alguém, ao qual eu não sou digno de desatar as sandálias». E no entanto a sua ação abre-se com um batismo a que o próprio Cristo se submete, a sua pregação tem como núcleo a mesma proclamação de Cristo: «O Reino de Deus está próximo». O seu destino é o mesmo do de Cristo, o martírio sob o jugo do poder cruel.

Há, por isso, uma representação cristológica da figura de João, cuja existência é totalmente polarizada em Cristo. É o mesmo registo que guia o «Evangelho da infância do Batista”, de que se proclama um excerto na solenidade de S. João. Ele é construído por Lucas em díptico com o do próprio Cristo, segundo o esquema “anunciação-nascimento-hinos-crescimento”. E é precisamente sobre esse trecho que agora fixamos a nossa atenção.

No centro está o nascimento do menino que é totalmente dom de Deus, tendo nascido de uma mãe estéril (segundo o módulo típico doas “nascimentos de um herói”, muito conhecido no Antigo Testamento). Deus entra na História com uma palavra viva que se faz carne na expetativa da plena incarnação do Filho. A novidade absoluta deste dom e desta palavra é documentada também pelo nome João, inédito na sua. Ele, com efeito, indica de maneira luminosa a missão e a realidade do Precursor, exprime a “graça” benéfica com que Deus envolve e transforma o seu eleito, que dessa forma se torna “gracioso” aos olhos de Deus e dos seres humanos.

Diante destra revelação divina no menino João e no pai que volta a ser “homem da palavra”, a comunidade reage com “temor”, que é ato de fé, de adoração e de louvor.

A comunidade torna-se missionária, e o anúncio do acontecimento revelador de Deus propaga-se por toda a Judeia. E é neste ponto que o evangelista sublinha o paralelo de João com Cristo. A frase final, «a mão do Senhor estava com ele», e o seguinte acrescento sobre o crescimento admirável da criança evocam as mesmas qualidades que se repetirão em plenitude para Cristo. O senhor age em João com a sua mão eficaz e libertadora.

Através deste retrato do Precursor configura-se a fisionomia não só de quem precedeu Cristo, preanunciando-o, mas também daquela de quem o seguirá anunciando-lhe a morte e ressurreição.

João é consagrado ao seu Senhor como o será o verdadeiro discípulo que seguir o seu Mestre na fé e no amor. Um seguimento total que abraça todo o arco da existência, do nascimento à morte, precisamente como João, chamado do ventre da mãe e votado à justiça do Reino de Deus até ao seu martírio. «Sobre ti, Senhor, me apoiei desde o ventre materno, desde o seio da minha mãe Tu és o meu sustento… E agora na velhice e na calvície eu anuncio o teu poder, a todas as gerações as tuas maravilhas» (Salmo 71, 6.18).

Sabemos que em torno a João se constituiu uma comunidade de discípulos, dos quais alguns se colocaram com alegria no seguimento de Jesus, enquanto outros se encastelarão em torno a João mesmo depois da sua morte numa espécie de “comunidade batista” autónoma de matriz rigorista

A solenidade do nascimento de João Batista permite-nos delinear os traços essenciais desta figura cujo nome é transportado por tantos homens e mulheres. Um nome, aliás, de significado sugestivo: liga-se a um verbo hebraico que está na base do substantivo “graça” (“hnn”). O rei diante do súbdito amado experimenta ternura e enche-o de “graça”, pela qual o súbdito se torna “gracioso”, transfigurado, glorificado. Este sentido do nome João deve ser, naturalmente entendido de maneira religiosa: para usar uma expressão aplicada por Lucas a Maria, João é «cheio de graça», envolvido pelo amor de Deus deus as suas origens, naturalmente em grau de formas diferentes em relação às da Mãe do Senhor.

Do Batista – chamado pela tradição cristã “Precursor”, isto é, aquele que corre antes, o arauto do Messias na base da profecia de Isaías (40, 3-5) citada pelos próprios evangelistas – nos falam os quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos e o historiador judeu Flávio Josefo, contemporâneo de Paulo. Este, na sua obra “Antiguidades judaicas”, apresenta-nos João como um mestre nobilíssimo de piedade e de virtude, que batiza mas apenas em sentido ritual, preso e decapitado sob o rei Herodes Antipas no forte de Maqueronte [Μαχαιροῦς;], sobre o mar Morto, por receio que em torno à sua figura se coagulasse o descontentamento popular contra o regime herodiano.

Alguns estudiosos sublinharam também os pontos de contacto da pregação e do batismo de João com a vida e as crenças da comunidade “monástica” judaica de Qumran, sobre a margem ocidental do mar Morto, conhecida pelas sensacionais descobertas dos textos da sua “biblioteca” a partir de 1947. Todavia, as distâncias de João deste contexto são superiores aos elementos paralelos.

Ele, com efeito, ergue-se sobretudo como aquele que proclama uma reviravolta radical, uma conversão da existência, e não uma simples pureza ritual e sacral. Ele é depois aquele que anuncia não só genéricos “últimos tempos” ou uma era messiânica, mas uma figura precisa de Messias, Jesus de Nazaré. Este é «o mais forte», em relação a quem ele não se sente digno sequer de ser simples escravo, aquele que desata ao seu senhor as sandálias.

É belíssimo o autorretrato que João esboça na base de um uso judaico, o do “amigo do esposo”, isto é, do mediador oficial entre o esposo e a esposa antes das bodas: «Não sou eu o Cristo. Quem possui a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo exulta de alegria à voz do esposo…»

Sabemos também que em torno a João se constituiu uma comunidade de discípulos, dos quais alguns se colocaram com alegria no seguimento de Jesus, enquanto outros se encastelarão em torno a João mesmo depois da sua morte numa espécie de “comunidade batista” autónoma de matriz rigorista. Com efeito, nos Evangelhos lemos frases deste género: «Porque é que os discípulos de João jejuam?... Senhor, ensina-nos a rezar como também João ensinou aos seus discípulos? (Marcos 2, 18; Lucas 11, 1).

Mas a fisionomia espiritual de João está ligada a alguns traços fundamentais. Antes de tudo, o seu nascimento glorioso, narrado por Lucas numa página muito intensa, da velhice de Isabel e da incredulidade de Zacarias. Ele é o profeta definitivo: «Tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo… João, um profeta? Sim, digo-vos, e mais que um profeta» (Lucas 1, 76; 7, 26). Ele está repleto pelo Espírito de Deus desde o ventre materno, para que a sua missão seja totalmente consagrada a Deus e ao seu Cristo.

O segundo traço do seu retrato está na sua voz, tempestuosa como a dos profetas antigos, e no testemunho que não conhece hesitações. Como dirá Jesus, João não é uma cana que se dobra ao vento, é um carvalho que só pode ser quebrado.

Eis, então, o terceiro traço, ligado a um ato preciso, o batismo de Jesus. A voz de João e a sua mão apontam para aquele homem: «Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!» (João 1, 29). E o batismo que ele realiza sobre Jesus transforma-se numa grande epifania divina. Cantará o evangelista seu homónimo: «Ele veio como testemunha para dar testemunho da luz. Não era ele a luz…» (1, 7-8)

O último traço de João está na doação total, no estilo dos grandes profetas. Os Evangelhos, com efeito, referem-nos a paixão e a morte de João numa narrativa ampla e repleta de veneração. A sua história foi a de um homem extraordinário que teve a consciência da grandeza da sua vocação, mas também do limite da sua missão.

É belíssimo, a propósito, o autorretrato que ele esboça na base de um uso judaico, o do “amigo do esposo”, isto é, do mediador oficial entre o esposo e a esposa antes das bodas: «Não sou eu o Cristo. Quem possui a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo exulta de alegria à voz do esposo… É preciso que Ele cresça e que eu diminua» (João 3, 28-30).

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