João Batista: Espiritualidade do “santo popular” forjado na radicalidade, determinação e humildade
«Ao oitavo dia vieram para circuncidar o menino e queriam
chamá-lo com o nome do seu pai, Zacarias. Mas a sua mãe intervém: Não,
chamar-se-á João. Disseram-lhe: Não há ninguém da tua parentela que se
chame com esse nome. Então perguntaram com gestos a seu pai como queria
que se chamasse. Ele pediu uma tabuinha, e escreveu: João é o seu
nome. Todos ficaram admirados. Nesse mesmo instante abriu-se-lhe a boca
e desatou-se-lhe a língua, e falava bendizendo Deus. Todos os seus
vizinhos foram tomados de temor, e por toda a região montanhosa da
Judeia se discorria sobre todas estas coisas. Aqueles que o escutavam,
conservavam-no no seu coração: Quem será esta criança?, diziam.
Verdadeiramente a mão do Senhor estava com ele» (Lucas 1).
Do silêncio de Zacarias nasce a última palavra profética da
Antiga Aliança, da esterilidade de Isabel nasce o anunciador da vida
perfeita oferecida por Deus ao seu povo. Nos Evangelhos a figura de
João e a sua mensagem são esboçados com os mesmos traços dos de Cristo,
precisamente segundo o princípio judaico segundo o qual «o enviado é
como aquele que envia».
Não é por acaso que a liturgia da Palavra de 24 de junho aplica a
João o segundo canto do Servo do Senhor (Isaías 49), que a tradição
cristã usou sempre em chave messiânica e cristológica. O Batista é o
“servo” de Deus e, portanto, do seu Messias (Ungido).
Como recorda Paulo no seu discurso em Antioquia da Pisídia, João
proclama: «Eu não sou aquele que vós pensais que eu seja! Eis que vem
depois de mim alguém, ao qual eu não sou digno de desatar as
sandálias». E no entanto a sua ação abre-se com um batismo a que o
próprio Cristo se submete, a sua pregação tem como núcleo a mesma
proclamação de Cristo: «O Reino de Deus está próximo». O seu destino é o
mesmo do de Cristo, o martírio sob o jugo do poder cruel.
Há, por isso, uma representação cristológica da figura de João,
cuja existência é totalmente polarizada em Cristo. É o mesmo registo que
guia o «Evangelho da infância do Batista”, de que se proclama um
excerto na solenidade de S. João. Ele é construído por Lucas em díptico
com o do próprio Cristo, segundo o esquema
“anunciação-nascimento-hinos-crescimento”. E é precisamente sobre esse
trecho que agora fixamos a nossa atenção.
No centro está o nascimento do menino que é totalmente dom de
Deus, tendo nascido de uma mãe estéril (segundo o módulo típico doas
“nascimentos de um herói”, muito conhecido no Antigo Testamento). Deus
entra na História com uma palavra viva que se faz carne na expetativa
da plena incarnação do Filho. A novidade absoluta deste dom e desta
palavra é documentada também pelo nome João, inédito na sua. Ele, com
efeito, indica de maneira luminosa a missão e a realidade do Precursor,
exprime a “graça” benéfica com que Deus envolve e transforma o seu
eleito, que dessa forma se torna “gracioso” aos olhos de Deus e dos
seres humanos.
Diante destra revelação divina no menino João e no pai que volta a
ser “homem da palavra”, a comunidade reage com “temor”, que é ato de
fé, de adoração e de louvor.
A comunidade torna-se missionária, e o anúncio do acontecimento
revelador de Deus propaga-se por toda a Judeia. E é neste ponto que o
evangelista sublinha o paralelo de João com Cristo. A frase final, «a
mão do Senhor estava com ele», e o seguinte acrescento sobre o
crescimento admirável da criança evocam as mesmas qualidades que se
repetirão em plenitude para Cristo. O senhor age em João com a sua mão
eficaz e libertadora.
Através deste retrato do Precursor configura-se a fisionomia não
só de quem precedeu Cristo, preanunciando-o, mas também daquela de quem o
seguirá anunciando-lhe a morte e ressurreição.
João é consagrado ao seu Senhor como o será o verdadeiro discípulo
que seguir o seu Mestre na fé e no amor. Um seguimento total que
abraça todo o arco da existência, do nascimento à morte, precisamente
como João, chamado do ventre da mãe e votado à justiça do Reino de Deus
até ao seu martírio. «Sobre ti, Senhor, me apoiei desde o ventre
materno, desde o seio da minha mãe Tu és o meu sustento… E agora na
velhice e na calvície eu anuncio o teu poder, a todas as gerações as
tuas maravilhas» (Salmo 71, 6.18).
Sabemos que em torno a João se constituiu uma comunidade de discípulos,
dos quais alguns se colocaram com alegria no seguimento de Jesus,
enquanto outros se encastelarão em torno a João mesmo depois da sua
morte numa espécie de “comunidade batista” autónoma de matriz rigorista
A solenidade do nascimento de João Batista permite-nos delinear os
traços essenciais desta figura cujo nome é transportado por tantos
homens e mulheres. Um nome, aliás, de significado sugestivo: liga-se a
um verbo hebraico que está na base do substantivo “graça” (“hnn”). O
rei diante do súbdito amado experimenta ternura e enche-o de “graça”,
pela qual o súbdito se torna “gracioso”, transfigurado, glorificado.
Este sentido do nome João deve ser, naturalmente entendido de maneira
religiosa: para usar uma expressão aplicada por Lucas a Maria, João é
«cheio de graça», envolvido pelo amor de Deus deus as suas origens,
naturalmente em grau de formas diferentes em relação às da Mãe do
Senhor.
Do Batista – chamado pela tradição cristã “Precursor”, isto é,
aquele que corre antes, o arauto do Messias na base da profecia de
Isaías (40, 3-5) citada pelos próprios evangelistas – nos falam os
quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos e o historiador judeu Flávio
Josefo, contemporâneo de Paulo. Este, na sua obra “Antiguidades
judaicas”, apresenta-nos João como um mestre nobilíssimo de piedade e
de virtude, que batiza mas apenas em sentido ritual, preso e decapitado
sob o rei Herodes Antipas no forte de Maqueronte [Μαχαιροῦς;], sobre o
mar Morto, por receio que em torno à sua figura se coagulasse o
descontentamento popular contra o regime herodiano.
Alguns estudiosos sublinharam também os pontos de contacto da
pregação e do batismo de João com a vida e as crenças da comunidade
“monástica” judaica de Qumran, sobre a margem ocidental do mar Morto,
conhecida pelas sensacionais descobertas dos textos da sua “biblioteca”
a partir de 1947. Todavia, as distâncias de João deste contexto são
superiores aos elementos paralelos.
Ele, com efeito, ergue-se sobretudo como aquele que proclama uma
reviravolta radical, uma conversão da existência, e não uma simples
pureza ritual e sacral. Ele é depois aquele que anuncia não só
genéricos “últimos tempos” ou uma era messiânica, mas uma figura
precisa de Messias, Jesus de Nazaré. Este é «o mais forte», em relação a
quem ele não se sente digno sequer de ser simples escravo, aquele que
desata ao seu senhor as sandálias.
É belíssimo o autorretrato que João esboça na base de um uso judaico, o
do “amigo do esposo”, isto é, do mediador oficial entre o esposo e a
esposa antes das bodas: «Não sou eu o Cristo. Quem possui a esposa é o
esposo; mas o amigo do esposo exulta de alegria à voz do esposo…»
Sabemos também que em torno a João se constituiu uma comunidade de
discípulos, dos quais alguns se colocaram com alegria no seguimento de
Jesus, enquanto outros se encastelarão em torno a João mesmo depois da
sua morte numa espécie de “comunidade batista” autónoma de matriz
rigorista. Com efeito, nos Evangelhos lemos frases deste género:
«Porque é que os discípulos de João jejuam?... Senhor, ensina-nos a
rezar como também João ensinou aos seus discípulos? (Marcos 2, 18;
Lucas 11, 1).
Mas a fisionomia espiritual de João está ligada a alguns traços
fundamentais. Antes de tudo, o seu nascimento glorioso, narrado por
Lucas numa página muito intensa, da velhice de Isabel e da incredulidade
de Zacarias. Ele é o profeta definitivo: «Tu, menino, serás chamado
profeta do Altíssimo… João, um profeta? Sim, digo-vos, e mais que um
profeta» (Lucas 1, 76; 7, 26). Ele está repleto pelo Espírito de Deus
desde o ventre materno, para que a sua missão seja totalmente
consagrada a Deus e ao seu Cristo.
O segundo traço do seu retrato está na sua voz, tempestuosa como a
dos profetas antigos, e no testemunho que não conhece hesitações. Como
dirá Jesus, João não é uma cana que se dobra ao vento, é um carvalho
que só pode ser quebrado.
Eis, então, o terceiro traço, ligado a um ato preciso, o batismo
de Jesus. A voz de João e a sua mão apontam para aquele homem: «Eis o
cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!» (João 1, 29). E o batismo
que ele realiza sobre Jesus transforma-se numa grande epifania divina.
Cantará o evangelista seu homónimo: «Ele veio como testemunha para dar
testemunho da luz. Não era ele a luz…» (1, 7-8)
O último traço de João está na doação total, no estilo dos
grandes profetas. Os Evangelhos, com efeito, referem-nos a paixão e a
morte de João numa narrativa ampla e repleta de veneração. A sua
história foi a de um homem extraordinário que teve a consciência da
grandeza da sua vocação, mas também do limite da sua missão.
É belíssimo, a propósito, o autorretrato que ele esboça na base de
um uso judaico, o do “amigo do esposo”, isto é, do mediador oficial
entre o esposo e a esposa antes das bodas: «Não sou eu o Cristo. Quem
possui a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo exulta de alegria à
voz do esposo… É preciso que Ele cresça e que eu diminua» (João 3,
28-30).
https://snpcultura.org/joao_batista_espiritualidade_do_santo_popular_forjado_na_radicalidade.html