Um simples pescador da Betsaida proclama que o filho de um carpinteiro é realmente
o Filho de Deus, por natureza. Ali é plantado o grão de mostarda, do
qual nasceria a Santa Igreja Católica Apostólica e Romana.
Evangelho: Solenidade de São Pedro e São Paulo
Ao
chegar à região de Cesaréia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta
aos seus discípulos: "Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?" Eles
responderam: "Uns dizem que é João Batista; outros, que é Elias; e
outros, que é Jeremias ou algum dos profetas". Perguntou-lhes de novo:
"E vós, quem dizeis que Eu sou?". Tomando a palavra, Simão Pedro
respondeu: "Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo". Jesus disse-lhe em
resposta: "És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o
sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te
digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as
portas do inferno nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino
do Céu; tudo o que ligares na Terra ficará ligado no Céu e tudo o que
desligares na Terra será desligado no Céu" (Mt 16, 13-19).
I - Considerações iniciais
Difícil
é encontrar alguém que nunca tenha comprovado a consonância da
sonoridade obtida através de cristais harmônicos. Basta um simples
golpe, em um só deles, para os outros ressoarem em concomitância. É,
até, uma prova para se conhecer a autenticidade destas ou daquelas
taças.
Assim,
também, no campo das almas. Discernimos a que é entranhadamente
católica e com facilidade a diferenciamos da tíbia, atéia ou herética,
quando fazemos "soar" uma simples nota: o amor ao Papado, seja quem for o
Papa. Tornam-se encandescidas as almas fervorosas, indiferentes as
tíbias, indispostas algumas, etc.
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Imagem de São Pedro
Basílica do Vaticano |
Pois
esta é a matéria do Evangelho de hoje. A fim de nos prepararmos para
contemplar as perspectivas que ele nos manifesta, ocorreu-nos reproduzir
as considerações transcritas a seguir. Poderemos, assim, ter uma noção
da qualidade do "cristal" de nossa alma:
"Tudo
quanto na Igreja há de santidade, de autoridade, de virtude
sobrenatural, tudo isto, mas absolutamente tudo sem exceção, nem
condição, nem restrição, está subordinado, condicionado, dependente da
união à Cátedra de São Pedro. As instituições mais sagradas, as obras
mais veneráveis, as tradições mais santas, as pessoas mais conspícuas,
tudo enfim que mais genuína e altamente possa exprimir o Catolicismo e
ornar a Igreja de Deus, tudo isto se torna nulo, maldito, estéril, digno
do fogo eterno e da ira de Deus, se separado do Romano Pontífice.
Conhecemos a parábola da videira e dos sarmentos. Nessa parábola, a
videira é Nosso Senhor, os sarmentos são os fiéis.
Mas
como Nosso Senhor Se ligou de modo indissolúvel à Cátedra Romana,
pode-se dizer com toda segurança que a parábola seria verdadeira
entendendo- se a videira como a Santa Sé, e os sarmentos como as várias
Dioceses, Paróquias, Ordens Religiosas, instituições particulares,
famílias, povos e pessoas que constituem a Igreja e a Cristandade. Isto
tudo só será verdadeiramente fecundo na medida em que estiver em íntima,
calorosa, incondicional união com a Cátedra de São Pedro.
"‘Incondicional',
dissemos, e com razão. Em moral, não há condicionalismos legítimos.
Tudo está subordinado à grande e essencial condição de servir a Deus.
Mas, uma vez que o Santo Padre é infalível, a união a seu infalível
magistério [só] pode ser incondicional.
"Por
isto, é sinal de condição de vigor espiritual, uma extrema
susceptibilidade, uma vibratilidade delicadíssima e vivaz dos fiéis por
tudo quanto diga respeito à segurança, glória e tranqüilidade do Romano
Pontífice. Depois do amor a Deus, é este o mais alto dos amores que a
Religião nos ensina. Um e outro amor se confundem até. Quando Santa
Joana d'Arc foi interrogada por seus perseguidores que a queriam matar, e
que para isto procuravam fazê-la cair em algum erro teológico por meio
de perguntas capciosas, ela respondeu: ‘Quanto a Cristo e à Igreja, para
mim são uma só coisa'.
E
nós podemos dizer: ‘Para nós, entre o Papa e Jesus Cristo não há
diferença'. Tudo o que diga respeito ao Papa diz respeito direta,
íntima, indissoluvelmente, a Jesus Cristo"1.
II - O Evangelho: "Tu es petrus"
Pergunta de Jesus e circunstância em que foi feita
Ao
chegar à região de Cesaréia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta
aos seus discípulos: "Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?".
A
cidade na qual se desenvolve o Evangelho de hoje havia sido construída
pelo tetrarca Filipe que, para angariar a simpatia do imperador César
Augusto, deu-lhe o nome de Cesaréia. Desconhece a História o exato
percurso empreendido pelo Senhor e pelos Apóstolos àquela altura dos
acontecimentos; a hipótese mais provável é a de que tenham atravessado a
via de Damasco a

Jerusalém, perto da ponte das Filhas de Jacó. O território onde nasce o
rio Jordão, compreendido entre Julias e Cesaréia, é rochoso, solitário e
acidentado. Foi nessa localidade montanhosa e pétrea que Herodes, o
Grande, erigiu um vistoso templo de mármore branco em homenagem ao
imperador César Augusto. Calcando as pedras da região, e talvez à vista
do tal templo sobre o alto das rochas, foi que se estabeleceu o diálogo
durante o qual se tornaram explícitas para os Apóstolos a natureza
divina de Jesus e a edificação da Santa Igreja.
Convém
não esquecermos o quanto a divina pedagogia de Jesus escolhia os
acidentes da natureza sensível para efeito didático, e assim poderem
seus ouvintes ter melhor compreensão das realidades invisíveis do
universo da Fé. A esse respeito, seriam inúmeros os casos a serem
citados, mas basta-nos lembrar o modo pelo qual Ele convocou os dois
irmãos pescadores, Pedro e André: "Segui-me e Eu farei de vós pescadores
de homens" (Mt 4, 19). Não se trata, portanto, de nos basearmos em
razões meramente poéticas para supor que o desenrolar dessa conversa
verificou- se sobre as pedras; há por detrás, um elevado teor simbólico.
Ali estavam rochas que deviam perpetuar- se, e a contemplação dessas
criaturas minerais, fruto de sua onipotência, tornava mais bela a solene
profecia da edificação de sua indestrutível Igreja.
Alguns
autores ressaltam outro importante aspecto: o fato de Jesus ter
escolhido uma região pertencente à gentilidade para manifestar- Se como
Filho de Deus e fundar o primado de sua Igreja. Eles interpretam como
sendo um prenúncio da rejeição do reino messiânico, pelos judeus, e sua
definitiva transferência para os gentios.
"Aconteceu
que estando a orar, em particular..." (Lc 9, 18). Conforme nos relata
São Lucas, toda a conversa narrada no Evangelho de hoje realizou- se
depois de Jesus ter-Se recolhido e deixado "perder-Se", com suas
faculdades humanas, nas infinitudes de seu Pai eterno. Utilizou-Se desse
meio infalível de ação, a prece, para conferir raízes e seiva imortais à
obra que lançaria.
Segundo
a Glosa, "querendo confirmar seus discípulos na Fé, o Salvador começa
por afastar de seus espíritos as opiniões e os erros que outros poderiam
ter infundido neles" 2; ou seja, convidando-os a terem clara
consciência dos equívocos da opinião pública a respeito da identidade
dEle, fortificava- lhes as convicções. É curioso o comentário de São
João Crisóstomo sobre o caráter "sumamente malicioso" 3 do juízo emitido
pelos escribas e fariseus a respeito do Divino Mestre, muito diferente
daquele da opinião pública que, apesar de errôneo, não era movido por
nenhuma malícia.
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Detalhe do quadro "Cristo dá as chaves a São Pedro", de Vicente Catena
Museu do Prado, Madri |
Jesus
não pergunta o que pensam os outros a respeito dEle, mas sim do Filho
do Homem, "a fim de sondar a Fé dos Apóstolos e dar-lhes ocasião de
dizer livremente o que sentiam, embora Ele não ultrapassasse os limites
daquilo que poderia lhes sugerir sua santa Humanidade" 4. Por todos os
conhecimentos que Lhe eram próprios, do divino ao experimental, Jesus
sabia quais eram as opiniões que circulavam com relação à Sua figura,
não necessitava, portanto, informar-Se; desejava, isto sim, levá-los a
proclamar a verdade em contestação aos equívocos da opinião pública.
O povo não considerava Jesus como o Messias
Eles responderam: "Uns dizem que é João Batista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas".
Os
Apóstolos tinham exata noção do juízo que os "homens" de então faziam a
propósito do Divino Mestre. Apesar de todas as evidências, dos
milagres, da doutrina nova dotada de potência, etc., o povo não O
considerava como o Messias tão esperado. Jesus surgia aos olhos de todos
como a ressurreição ou o reaparecimento de anteriores profetas. Não
encontravam nEle a eficaz magnificência do poder político, tão essencial
para a realização do mirabolante sonho messiânico que os inebriava. Daí
imaginarem-No o Batista ressurrecto, ou Elias, enquanto mais
especificamente um precursor, ou até mesmo um Jeremias, lídimo defensor
da nação teocrática (cf. 2 Mac 2, 1-12). Vêse claramente neste versículo
como o espírito humano é inclinado ao erro e como facilmente se
distancia dos verdadeiros prismas da salvação. Mas, pelo menos, aqueles
seus contemporâneos ainda discerniam algo de grandioso em Jesus. Seria
interessante nos perguntarmos como Ele é visto pela humanidade
globalizada, cientificista e relativista de nossos dias.
Pedro O reconhece como Filho de Deus
Perguntou-lhes de novo: "E vós, quem dizeis que Eu sou?"
Bem
sublinha São João Crisóstomo a essência desta segunda pergunta 5. Sem
refutar os erros de apreciação dos outros, Jesus quer ouvir dos próprios
lábios de seus mais íntimos o juízo que dEle fazem. Para lhes tornar
fácil a proclamação de Sua divindade, não usa aqui o título humilde de
Filho do Homem.
Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: "Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo".
Pedro
falava como intérprete da opinião de todos, por ser o mais fervoroso e o
principal 6, embora não fosse a primeira vez que Jesus era reconhecido
como Filho de Deus. Já Natanael (cf. Jo 1, 49), os Apóstolos após a
tempestade no mar de Tiberíades (cf. Mt 14, 33) e o próprio Pedro (cf.
Jo 6, 69) haviam externado essa convicção.
Sola
fides! Aqui não há elemento algum emocional ou sensível, como em
circunstâncias anteriores. Em meio às rochas frias de um ambiente
ecológico, longe de acontecimentos arrebatadores e da agitação das
turbas ou das ondas, só a voz da Fé se faz ouvir.
"Certíssimo
argumento é que Pedro chamou a Cristo de Filho de Deus por natureza,
quando O contrapôs a João, a Elias, a Jeremias e aos profetas, os quais
foram - claro está - filhos de Deus por adoção" 7. Ademais, como comenta
o mesmo Maldonado, Pedro dá a Deus o título de "vivo" para distingui-
Lo dos deuses pagãos que são substâncias mortas. E, por fim, o artigo -
como sói acontecer na língua grega - antecedendo o substantivo "filho",
designa "filho único" segundo a natureza, e não um entre vários.
A ciência humana não tem força para atingir a união hipostática
Jesus
disse-lhe em resposta: "És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi
a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu".
Ao
felicitar seu Apóstolo, Jesus avalia a afirmação de Pedro a respeito de
sua filiação e, portanto, de sua natureza divina e consubstancialidade
com o Pai. Sobre este particular são unânimes os comentaristas. Era um
costume judaico indicar a filiação da pessoa para ressaltar sua
importância; neste caso concreto havia a intenção de manifestar o quanto
"Cristo é tão naturalmente o Filho de Deus como Pedro é filho de Jonas,
quer dizer, da mesma substância daquele que o engendrou"8.
As
palavras de Pedro não são fruto de um raciocínio com base num simples
conhecimento experimental. Não haviam sido poucas as curas logo após as
quais os beneficiados conferiam com exclamações ao Salvador o título de
"Filho de Davi" (cf. Mt 15, 22; Mc 10, 47, etc.), conhecido como um dos
indicativos do Messias. Os próprios demônios, ao se encontrarem com Ele,
proclamavam-No "o Santo de Deus" (Lc 4, 34), "o Filho de Deus" (Lc 4,
41), "Filho do Altíssimo" (Lc 8, 28; Mc 5, 7). Ele mesmo declarara ser
"dono do sábado" (Mt 12, 8), e após a multiplicação dos pães a multidão
queria aclamá-Lo "Rei" (Jo 6, 15). Assim como estas, muitas outras
passagens poderiam facilmente nos indicar as profundas impressões
produzidas por Jesus sobre seus discípulos9. Porém, em nenhuma ocasião
anterior Pedro recebeu tal elogio saído dos lábios do Salvador. Nesta
passagem, ele "é feliz porque teve o mérito de elevar seu olhar além do
que é humano e, sem deter-se no que provinha da carne e do sangue,
contemplou o Filho de Deus por um efeito da revelação divina e foi
julgado digno de ser o primeiro a reconhecer a Divindade de Cristo"10.
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O fundamento da Igreja é Pedro e todos os seus sucessores, os romanos pontífices, pois, caso contrário, não perduraria a existência do edifícioPraça de São Pedro - Vaticano |
Portanto,
a afirmação de Pedro se realizou com base num discernimento penetrante,
luzidio e abarcativo da natureza divina do Filho de Deus. A ciência, a
genialidade ou qualquer outro dom humano não têm força suficiente para
atingir os páramos da união hipostática realizada no Verbo Encarnado. É
indispensável ser revelada pelo próprio Deus e aceita pelo homem. Mas o
homem sem Fé aferra-se às suas próprias idéias, tradições e estudos,
rejeitando, às vezes, as provas mais evidentes, como o são os milagres.
Para este, Jesus não passa - e quando muito - de um sábio ou de um
profeta. Haverá também aqueles que não O verão senão como "o filho do
carpinteiro" (Mt 13, 55).
Essa
é a nossa Fé ensinada pela Igreja, revelada pelo próprio Deus,
anunciada pelo Filho, o enviado do Pai, e confirmada pelo Espírito
Santo, enviado pelo Pai e pelo Filho. As verdades da Fé não são fruto de
sistemas filosóficos, nem da elaboração de grandes sábios.
Jesus edifica Sua Igreja sobre Pedro
Também Eu te digo: "Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno nada poderão contra ela".
Foi
indispensável e excelente ter afirmado Orígenes inspiradamente: "Nosso
Senhor não precisa se é contra a pedra sobre a qual Cristo construiu sua
Igreja ou se é contra a própria Igreja, construída sobre a pedra, que
as portas do inferno não prevalecerão. Mas é evidente que elas não
prevalecerão nem contra a pedra nem contra Igreja"11. Sim, porque para
destruir essa pedra, ou seja, o Vigário de Jesus Cristo na Terra, muitos
esforços e diligências de um considerável número de hereges têm sido
empregados, na tentativa de abalar o sagrado edifício da Igreja a partir
de seu fundamento, o qual é a alegria, consolo e triunfo dos
verdadeiros católicos. Nesse "edificarei" se encontra o real anúncio do
Reino de Jesus. O grande e divino desígnio começa a se delinear nesse
nome, até então nunca usado: "minha Igreja".
O
plano de Jesus é proclamado sobre as rochas de Cesaréia, pelo próprio
Filho de Deus, que Se apresenta como um divino arquiteto a erigir esse
edifício indestrutível, grandioso e santíssimo, a sociedade espiritual,
constituída por homens: militante na Terra, padecente no Purgatório,
triunfante no Céu. O conjunto de todos aqueles que se unem debaixo da
mesma Fé, nesta Terra, chama-se Igreja. Desta, o fundamento é Pedro e
todos os seus sucessores, os romanos pontífices, pois, caso contrário,
não perduraria a existência do edifício. Eis um ponto vital de nossa Fé:
"o fato da Igreja estar edificada sobre o próprio Pedro" que aliás - "é
admitido por todos os autores antigos, excepto os hereges"12.
Um só corpo e um só espírito em torno do Sucessor de Pedro
"Há
na Igreja muitas pessoas constituídas em autoridade, às quais devemos
estar unidos pela obediência. No entanto, toda essa variedade precisa
reduzir- se a um prelado primeiro e supremo, em quem principalmente se
concentre o principado universal sobre todos. Deve reduzir-se não só a
Deus e a Cristo, mas também a Seu vigário; e isto não por estatuto
humano, mas por estatuto divino, mediante o qual Cristo constituiu São
Pedro príncipe dos Apóstolos, estabelecidos estes, por sua vez, como
príncipes na Terra. E Cristo fez isso convenientissimamente, por assim o
exigirem a ordem da justiça universal, a unidade da Igreja e a
estabilidade, tanto dessa ordem, quanto dessa unidade" 13.
O
"Tu es Petrus ..." será aplicado a todos os escolhidos em conclave para
se sentarem na Cátedra da Infalibilidade. Assim, morreu Pedro, mas não o
Papa; e é em torno dele que a Igreja mantém a sua unidade.
"Fácil
é a prova que confirma a Fé e compendia a verdade. O Senhor fala a São
Pedro e lhe diz: ‘Eu te digo que tu és Pedro' (Mt 16, 18). E noutro
lugar, depois de Sua ressurreição: ‘Apascenta minhas ovelhas' (Jo 21,
17). Somente sobre ele edifica Sua Igreja, e o encarrega de apascentar
seu rebanho. E embora confira igual poder a todos os Apóstolos e lhes
diga: ‘Como meu Pai Me enviou, assim Eu vos envio' (Jo 20, 21), sem
embargo, para manifestar a unidade, estabeleceu uma Cátedra, e com sua
autoridade dispôs que a origem dessa unidade se fundamentasse em um. Por
certo, todos os Apóstolos eram o mesmo que Pedro, adornados com a mesma
participação de honra e poder; mas o princípio dimana da autoridade, e a
Pedro foi dado o Primado para demonstrar que uma é a Igreja de Cristo e
uma a Cátedra. Todos são pastores, mas há um só rebanho apascentado por
todos os Apóstolos de comum acordo [...].
"Pode
ter Fé quem não crê nessa unidade da Igreja? Pode pensar que se
encontra dentro da Igreja quem se opõe e resiste à Igreja, quem abandona
a Cátedra de Pedro, sobre a qual ela está fundada? São Paulo também
ensina o mesmo, e manifesta o mistério da unidade, ao dizer: ‘Há um só
corpo e um só espírito, como também só uma esperança, a de vossa
vocação. Só um Senhor, uma Fé, um batismo, um Deus' (Ef 4, 4-6)" 14.
Jurisdição plena, suprema e universal
Se
lermos os Atos dos Apóstolos, encontraremos Pedro exercendo esse
supremo poder, ao falar em primeiro lugar nas reuniões dos Apóstolos, ao
propor o que se deve fazer, inaugurando a missão apostólica, encerrando
discussões com sua palavra, etc. E assim se têm perpetuado, ao longo de
dois milênios, a jurisdição e o magistério dos Papas.
Todo
sucessor de Pedro possui verdadeira jurisdição, pois tem o poder de
promulgar leis, julgar e impor penas, de forma direta, em matéria
espiritual, e indireta, no campo temporal, sempre que se apresente como
necessária para obter bens espirituais. Essa jurisdição é plena: não há
poder na Igreja que não resida no Papa. É universal, ou seja, todos os
membros da Igreja (fiéis, sacerdotes e bispos) a ele estão submetidos.
É, ademais, suprema: o Papa acima de todos, e ninguém acima dele. Até
mesmo os Concílios Ecumênicos não podem se realizar sem ser por ele
convocados e presididos.
Os próprios estatutos conciliares não o obrigam, tendo ele o poder de mudá-los ou de derrogá-los.
Outro
tanto se pode afirmar sobre uma análoga e grande função de Pedro e de
seus sucessores: o supremo Magistério que, como coluna que sustenta a
Igreja, não pode equivocar-se. O Papa é infalível ao falar ex cathedra,
ou seja, enquanto doutor de todos os cristãos, ao definir com autoridade
apostólica doutrinas sobre Fé e moral, que devem ser admitidas por toda
a Igreja universal.
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Papa Francisco |
Aí está o motivo pelo qual "as portas do inferno" não poderão se sobrepor a um edifício construído sobre a pedra que é Pedro.
"Dar-te-ei
as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na Terra ficará ligado no
Céu e tudo o que desligares na Terra será desligado no Céu".
Cristo
retornaria ao Pai, deixando nas mãos de Pedro as chaves de Sua Igreja.
"Quem tem o uso legítimo e exclusivo das chaves de uma casa ou de uma
cidade, este é o administrador, o intendente supremo que recebeu os
poderes de seu senhor. A Igreja é o reino dos Céus neste mundo; a Igreja
Triunfante será o reino definitivo e eterno dos Céus, prolongamento
desta mesma Igreja da Terra, já purificada de toda impureza. Pedro terá
poder de abrir e fechar a entrada nesta Igreja temporal e,
conseqüentemente, na eterna" 15.
A
cabeça desse corpo místico sempre será Cristo Jesus. Durante a História
da humanidade, Ele será o chefe invisível, mas deixa entre nós um Pedro
acessível, o "doce Cristo na Terra" - segundo expressão usada por Santa
Catarina de Sena -, a quem todos devemos amar como bom pai, obedecer
até às suas mais leves insinuações e conselhos, honrar como a um supremo
monarca, rei de reis.
III - Nasce uma obra indestrutível
É
de pasmar o desenrolar desse acontecimento histórico ocorrido na
"região de Cesaréia de Filipe". Um simples pescador da Betsaida proclama
que o filho de um carpinteiro é realmente Filho de Deus, por natureza.
Este, em seguida, anuncia que edificará uma obra indestrutível e deixará
em mãos de seu administrador, com plenos poderes de jurisdição e
magistério, "as chaves do Reino do Céu". O ambiente que os cerca é
pobre, árido mas com certa grandeza. Ali é plantado "o grão de
mostarda", do qual nasceriam as igrejas, as catedrais, as cerimônias, os
vitrais, as universidades, os hospitais, os mártires, os confessores,
as virgens, os doutores, os santos, enfim, a Santa Igreja Católica
Apostólica e Romana.
Passaram-se
dois milênios e, depois de tantas e catastróficas procelas, inabalável
continua essa "nau de Pedro", tendo Cristo, com poder absoluto, em seu
centro. Nenhuma outra instituição resistiu à corrupção produzida pelos
desvios morais ou pela perversão da razão e do egoísmo humano. Só a
Igreja soube enfrentar as teorias caóticas, opondo-lhes a verdade
eterna; arrefecer o egoísmo, a violência e a volúpia, utilizando as
armas da caridade, justiça e santidade; pervadir e reformar os poderes
despóticos e materialistas deste mundo, com a solene e desarmada
influência de uma sábia, serena e maternal autoridade. Não podiam mãos
meramente humanas erigir tão portentosa obra, só mesmo a virtude do
próprio Deus seria capaz de conferir santidade e elevar à glória eterna
homens concebidos no pecado.
São Paulo, o Apóstolo das Gentes
Nem
a vida nem a morte podiam separar a Paulo do amor de Cristo. Por isso,
dois mil anos depois do início de sua peregrinação terrena, a monumental
obra apostólica do Apóstolo das Gentes continua viva e produzindo
abundantes frutos para a Igreja
A
vocação é um dom concedido liberalmente por Deus. E, por vezes,
compraz-se o Senhor em chamar alguém aparentemente contrário à missão
para a qual Ele o destina, a fim de manifestar com maior fulgor o poder
de Sua Graça e a gratuidade do Seu chamado. Nesses casos, apesar dos
aparentes paradoxos e à revelia do próprio interessado, cujas aspirações
parecem entrar em choque com os desígnios Divinos, o Senhor vai
preparando os caminhos, servindo-Se até dos próprios obstáculos para
fazer cumprir sua Santa Vontade.
Nada
parecia indicar que aquele jovenzinho de rosto vivo e inteligente, de
nome Saulo, viesse a transformar-se num intrépido defensor de Jesus
Cristo. Nascido em Tarso, na Cilícia, no seio de uma família judaica, o
pequeno Saulo esteve, desde muito cedo, sujeito a duas fortes
influências que pesariam grandemente na formação de seu caráter.
De
um lado, as convicções religiosas que aprendera de seus pais não
tardaram em fazer dele um autêntico fariseu, apegado às tradições,
anelante pela chegada de um Messias vitorioso e libertador do povo
eleito, então submetido ao jugo estrangeiro, e zeloso cumpridor da Lei
até em suas mínimas prescrições.
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"São Paulo" - Praça de São Pedro (Vaticano) |
De
outro lado, o ambiente de sua cidade natal marcou profundamente a
personalidade do jovem fariseu. Tarso - metrópole grega, súdita do
Império Romano - tornarase, por sua localização privilegiada, um dos
centros de comércio mais importantes daquele tempo. Regurgitava de
gente, proveniente das nações mais diversas, cujas línguas e costumes
misturavam-se sob o fator preponderante da cultura helênica. A
Providência começava a preparar o jovem fariseu para sua futura missão
de Apóstolo das Gentes.
Discípulo de Gamaliel
Apenas
saído da adolescência, Saulo abandonou sua pátria para instalar-se na
cidade-berço da religião de seus antepassados: Jerusalém. Ali tornou-se
assíduo estudioso das Escrituras, instruído pelo douto Gamaliel, um dos
mais destacados membros do Sinédrio. Também aqui podemos notar a mão de
Deus intervindo em sua vida, pois o conhecimento dos Livros Sagrados,
que adquiriu ao longo desses anos, servir-lhe-ia mais tarde para abrir
seus horizontes a respeito da realidade messiânica de Jesus Cristo.
Entretanto,
se Saulo progredia a passos rápidos nas doutrinas farisaicas, sob o
olhar vigilante de Gamaliel, em nada pareceu assimilar a prudência que
caracterizava seu mestre, sempre cauto em seus juízos e comedido nas
apreciações. Pelo contrário, o jovem aluno dava mostras de um exaltado
fanatismo religioso, como ele mesmo confessaria em sua epístola aos
Gálatas: "Avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de
idade e nação, extremamente zeloso das tradições de meus pais" (Gl 1,
14).
No
interior do discípulo de Gamaliel latejava um coração sincero, à
procura da verdade. Buscava-a ardorosamente, desejoso de alcançar o
pleno conhecimento dela. Não sabia que o termo desses seus anseios
encontravase nAquele que, de Si mesmo, dissera: "Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim" (Jo 14, 6).
Sim,
Saulo não poderia chegar ao Pai, Suprema Verdade, sem passar por Jesus,
o Mediador entre Deus e os homens. A afirmação proferida pelo Divino
Mestre, momentos antes de Sua Paixão, ele a veria cumprir-se em sua
vida, ainda que contra a sua vontade e apesar de suas relutâncias. E a
ocasião se haveria de apresentar justamente quando as convicções de
Saulo, chocadas ante o Cristianismo que surgia, haviam-se convertido em
ódio profundo contra este.
Encontro de Saulo com o Cristianismo
Saulo
passara alguns anos fora de Jerusalém, que coincidiram com o período da
vida pública de Jesus. Quando voltou, verificou uma grande mudança. A
Cidade Santa não era a mesma que ele conhecera em seus tempos de
estudante: após a tragédia da Paixão, pesava sobre a consciência do povo
e, sobretudo, das autoridades a figura ensangüentada da Vítima do
Gólgota, que eles em vão procuravam lançar no esquecimento. E mais: os
discípulos daquele Homem não temiam pregar sua doutrina no próprio
Templo, proclamando que esse Jesus a quem haviam matado ressuscitara dos
mortos (cf. At 3, 11ss.).
Tais
acontecimentos não podiam deixar indiferente um fariseu convicto como
Saulo. Não compreendia que aqueles simples galileus se levantassem
impunemente contra a religião de seus antepassados, arrastando atrás de
si tamanha multidão de seguidores. Sua irritação chegou ao auge quando,
estando na sinagoga chamada dos Libertos, onde semanalmente se reuniam
judeus de todas as comunidades da Diáspora, deparou- se com um jovem
chamado Estêvão, que anunciava denodadamente as glórias do Crucificado.
Momentos
mais tarde, tendo sido apresentado Estêvão ao tribunal do Grande
Conselho, Saulo escutou atentamente o longo discurso no qual este
demonstrou, por meio de exemplos históricos e de profecias, ser Jesus o
Messias esperado. O jovem fariseu sentia-se incomodado: as palavras de
Estêvão eram tão inspiradas e convincentes, que não se lhe podia
resistir (Cf. At 6, 10); de outro lado, a imagem desse Jesus Nazareno,
que ele não conhecera, parecia perseguilo, e constantemente via-se
obrigado a ouvir falar a respeito, de tal modo os seus adeptos se
espalhavam por Jerusalém. Duro lhe era recalcitrar contra o aguilhão
(cf. At 26, 14). E, entretanto, Saulo recalcitrava!
Indignado
diante da coragem de Estêvão, aprovou entusiasticamente sua morte (cf.
At 8, 1) e considerou como uma honra a missão de custodiar os mantos dos
apedrejadores, uma vez que sua idade não lhe permitia levantar a mão
contra o condenado.
Surge o perseguidor dos cristãos
A
partir daquele dia, o exaltado discípulo de Gamaliel não pôs mais freio
à sua fúria. Acreditando "que devia fazer a maior oposição ao nome de
Jesus de Nazaré" (At 26, 9), entrava nas casas dos fiéis e arrancava
delas homens e mulheres para entregálos à prisão (cf. At 8, 3); chegava a
maltratá-los para obrigá-los a blasfemar (cf. At 26, 11). Não contente
com devastar apenas a Igreja de Jerusalém, foi apresentar-se ao príncipe
dos sacerdotes, pedindo-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o
fim de prender, nessa cidade, todos os que se proclamassem seguidores da
nova doutrina (cf. At 9, 2).
Mas,
esse Jesus a quem ele teimava em perseguir (At 9, 5), viria a
atravessar- Se de novo em seu caminho, desta vez de modo definitivo e
eficaz.
Podemos
imaginar a ânsia do jovem Saulo ao aproximar-se de Damasco, antegozando
a hora de saciar sua cólera no cumprimento da missão que se propunha.
Mas eis que, subitamente, uma luz fulgurante vinda do Céu envolveu-o e a
seus companheiros, derrubando-o do cavalo. Ali, caído por terra e
cegado pelo resplendor dos raios divinos, o orgulhoso fariseu não pôde
mais resistir ao poder de Cristo e declarou-se vencido: "Senhor, que
queres que eu faça?" (At 9, 6).
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O jovem sentia-se incomodado: as palavras de Estêvão eram tão inspiradas, que não se lhe podia resistir
"Martírio de Santo Estêvão - Juan de Juanes Museu do Prado, Madri |
De
perseguidor que era, poucos instantes antes, passava a servo fiel,
pronto para obedecer aos mandatos do Divino Perseguido. Quanta glória
para o Crucificado! Por um simples toque de Sua graça, transformara em
Seu Apóstolo um dos mais ferventes discípulos daqueles que haviam sido
seus principais contendores, durante sua vida pública.
Ajudado
por seus companheiros, Saulo ergueu-se do chão. Entretanto, mais do que
levantar-se do solo, surgiu em sua alma "o homem novo, criado à imagem
de Deus, em verdadeira justiça e santidade" (Ef 4, 24). O blasfemador de
outrora permaneceria para sempre prostrado num amoroso reconhecimento
de sua derrota: "Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os
pecadores, dos quais sou eu o primeiro. Se encontrei misericórdia, foi
para que em mim primeiro Jesus Cristo manifestasse toda a sua
magnanimidade e eu servisse de exemplo para todos os que, a seguir, nEle
crerem, para a vida eterna" (I Tm 1, 15-16).
Saulo converte-se em Paulo
Com
a mesma radicalidade com que outrora se apegara ao judaísmo, Saulo
abraçava agora a Igreja de Cristo. A graça respeitara a natureza,
conservando as características próprias de sua personalidade que viriam
mais tarde a contribuir na formação da escola paulina de vida
espiritual. A partir desse momento, o Saulo convertido, o novo Paulo, só
se moveria por um único ideal, que tomava todas as fímbrias de sua alma
e dava verdadeiro sentido à sua existência: "Quanto a mim, não
pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo"
(Gl 6, 14).
Doravante
essa Cruz - na qual Paulo não apenas considerava os sofrimentos do
Salvador, mas via, sobretudo, os esplendores da Ressurreição - seria
para ele o rumo de sua vida, a luz dos seus passos, a fortaleza de sua
virtude, o seu único motivo de glória. Esse amor, que num instante
operara a sua transformação, o impelia agora a falar, a pregar, a
percorrer os confins do mundo a fim de conquistar almas para Cristo,
arrancando-lhe, do fundo do coração, este gemido: "Ai de mim se eu não
evangelizar!" (I Cor 9, 16).
Por
esse amor estava disposto a enfrentar todas as tribulações, a suportar
os piores tormentos, fossem de ordem natural, como também os de ordem
moral: "Muitas vezes vi a morte de perto. Cinco vezes recebi dos judeus
os quarenta açoites, menos um. Três vezes fui flagelado com varas. Uma
vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no
abismo. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de
salteadores, perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos
pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos
entre falsos irmãos! Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e
sede, freqüentes jejuns, frio e nudez! Além de outras coisas, a minha
preocupação cotidiana, a solicitude por todas as igrejas!" (II Cor 11,
23-28).
Ele
havia se proposto, antes de tudo, à glorificação de Jesus Cristo e da
Sua Igreja, e isto constituía para ele o suco essencial, o norte de sua
vida. A este respeito comenta São João Crisóstomo: "Cada dia ele subia
mais alto e se tornava mais ardente, cada dia lutava com energia sempre
nova contra os perigos que o ameaçavam. [...] Realmente, no meio das
insídias dos inimigos, conquistava contínuas vitórias, triunfando de
todos os seus assaltos. E em toda parte, flagelado, coberto de injúrias e
maldições, como se desfilasse num cortejo triunfal, erguendo numerosos
troféus, gloriava-se e dava graças a Deus, dizendo: ‘Graças sejam dadas a
Deus que nos fez sempre triunfar' (II Cor 2, 14)."
Assim,
pouco a pouco, por meio de suas viagens apostólicas e das numerosas
cartas através das quais sustentava na Fé seus filhos espirituais, Paulo
ia assentando os fundamentos da Esposa Mística de Cristo. Nem mesmo
internamente havia de lhe faltar adversários: por vezes, entre os
próprios cristãos, surgiam conceitos errôneos, como o de querer obrigar
os pagãos convertidos a praticar os costumes da Lei Mosaica. A esse
respeito Paulo levou sua ousadia até o ponto de discutir com o próprio
Apóstolo Pedro, "resistindo-lhe francamente, porque era censurável" (Gl
2, 11).
Pedro
aceitou com humildade o ponto de vista de Paulo e apressou-se em
colocá-lo em prática. Mas os cristãos que haviam espalhado suas idéias
pelas igrejas da Galácia não o imitaram, acrescentando ainda que a
justificação provinha estritamente do cumprimento da Lei. Nada poderia
ser tão nocivo para a Igreja nascente do que tais enganos, e Paulo logo o
percebeu. Decidiu deixar por escrito toda a doutrina sobre esse ponto, e
o fez com tanta segurança e clareza que deduz-se têla recebido dos
lábios do próprio Jesus.
Assim, a epístola dirigida aos Gálatas é um escrito polêmico, sem rece
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O orgulhoso fariseu não pôde mais resistir ao poder de Cristo e declarou-se vencido: "Senhor, que queres que eu faça?"
"A conversão de São Paulo", por Murillo - Museu do Prado, Madri |
ios de apresentar a verdade tal como ela é: "Ó insensatos gálatas! Quem
vos fascinou a vós, ante cujos olhos foi apresentada a imagem de Jesus
Cristo crucificado? [...] Todos os que se apóiam nas práticas legais
estão sob um regime de maldição" (Gl 3, 1.10). E pouco antes, afirmava:
"Nós cremos em Jesus Cristo, e tiramos assim a nossa justificação da fé
em Cristo, e não pela prática da lei" (Gl 2, 16).
Se
Paulo teve de enfrentar oposições dentro de seu próprio povo, viuse
também contestado pelos gregos, que apresentavam objeções de teor
completamente diferente, mas não menos perigosas. A Grécia, principal
centro da cultura naqueles tempos, orgulhava-se da fama de seus
pensadores e de ser o berço da filosofia. Ora, a palavra e a pregação
trazidas por Paulo, "longe estavam da eloqüência persuasiva da
sabedoria" (I Cor 2, 4), como ele mesmo afirmava.
Assim,
não raras vezes tornavase ele alvo do desprezo ou objeto de vergonha
para os convertidos. Ele pouco se importava com as ofensas feitas à sua
pessoa, mas receava que seus discípulos fizessem eco a idéias tão vãs ou
viessem a sucumbir, por medo das humilhações. Por isso, escrevia ele
aos fiéis de Corinto, cidade onde principalmente essas falsas doutrinas
haviam encontrado aceitação: "A linguagem da Cruz é loucura para os que
se perdem, mas para os que foram salvos, para nós, é uma força divina"
(I Cor 1, 18).
Não
era esse, porém, o pior dos obstáculos encontrados por Paulo na Grécia.
Afundados na devassidão e na desordem moral, os gregos haviam
elaborado, ao longo dos tempos, uma justificativa para os seus maus
costumes, negando a ressurreição dos mortos. Alguns mesmo, como Epicuro
de Samos (†270 a.C.), chegaram a afirmar que a alma humana é material e
mortal.
No
próprio Evangelho percebemos lampejos dessa candente temática quando os
saduceus - que, por influência helênica, não acreditavam na
ressurreição - se aproximaram de Jesus para pô-lo a prova, mediante uma
pergunta capciosa (cf. Lc 20, 27-39). A discussão, como vemos, vinha de
longa data e se erguia como principal empecilho para o desenvolvimento
do apostolado paulino.
Talvez
Paulo, em seus tempos de fervor fariseu, já tivera de enfrentar os
mesmos saduceus a esse propósito. gora, porém, como cristão, possuía o
argumento da Ressurreição de Cristo e contava com o poderoso auxílio da
graça.
Grande Apóstolo da Ressurreição
As
dúvidas expostas pelos gregos, quando não a oposição aberta, servirlhe-
iam de estímulo para aprofundarse mais na doutrina da ressurreição e
deixá-la explicitada para os séculos futuros. Assim escreveu ele aos
coríntios: "Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos,
como dizem alguns de vós que não há ressurreição? Se não há ressurreição
dos mortos, nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é vã a
nossa pregação, e também é vã a vossa fé. [...] Se é só para esta vida
que temos colocado a nossa esperança em Cristo, somos, de todos os
homens, os mais dignos de lástima. Mas não! Cristo ressuscitou dentre os
mortos como primícias dos que morreram!" (I Cor 15, 12-14; 19-20).
Custoso
era, para aqueles gregos de vida desregrada, ter de assimilar esses
princípios. Aceitando a ressurreição da carne, ver-se-iam forçosamente
convidados a uma mudança de costumes e a abraçarem um modo de pensar e
de comportar-se condizente com essa esperança. Mas até mesmo suas
relutâncias contribuiriam para o bem, como afirma o próprio Paulo:
"Oportet et haereses inter vos esse" (I Cor 11, 19) - é necessário que
haja partidos, ou heresias, entre vós. Impelido pelas circunstâncias,
Paulo se transforma no grande Apóstolo da Ressurreição.
Cordeiro e leão ao mesmo tempo
Nem
tudo, porém, eram combates para o incansável Paulo. Se face ao erro e à
falta de fé ele mostrava todo o seu ardor combativo e sua
intransigência, em relação aos bons deixava entrever um fundo de alma
extremamente afetuoso e compassivo, ordenado segundo a caridade de
Cristo. Nesta admirável conjugação de virtudes, na aparência opostas,
Paulo assemelhava-se ao Divino Mestre, sempre disposto a perdoar ou
pronto a repreender, a ser
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Algemado, Paulo é levado de Jerusalém a Roma. Durante a viagem, não perdia a oportunidade de anunciar o Evangelho em todos os lugares por onde passava. |
Cordeiro e Leão ao mesmo tempo.
Em
sua carta aos fiéis de Filipos, que se inquietavam por seus sofrimentos
e suas necessidades, assim escreve: "Deus me é testemunha da ternura
que vos consagro a todos, pelo entranhado amor de Jesus Cristo!" (Fil 1,
8). E ainda, aos mesmos gálatas, que antes invectivara a respeito de
seus desvios, escrevia mais adiante: "Filhinhos meus, por quem de novo
sinto dores de parto, até que Cristo seja formado em vós, quem me dera
estar agora convosco" (Gl 4, 19).
São Paulo, segundo Bossuet
Difícil
é exaltar o Apóstolo das Gentes em espaço tão exíguo. A pluralidade
estonteante de seus feitos, o poder de sua voz e o alcance de sua ação
apostólica, cujos frutos até hoje alimentam a Igreja, deixam em embaraço
qualquer escritor. Por isso recorremos à incomparável eloqüência de
Bossuet, que assim descreveu o ímpeto da pregação do Apóstolo:
"Este
homem, ignorante na arte do bem-falar, de locução rude e de acento
estrangeiro, chegará à esmerada Grécia, mãe de filósofos e oradores, e,
apesar da resistência mundana, fundará mais igrejas do que Platão teve
discípulos. Pregará a Jesus em Atenas, e o mais sábio dos oradores
passará do Areópago para a escola deste bárbaro. Continuará mais adiante
em suas conquistas, e abaterá aos pés do Senhor a majestade das águias
romanas na pessoa de um prócônsul, e fará tremer em seus tribunais os
juízes diante dos quais fora citado. Roma ouvirá sua voz, e um dia
aquela velha mestra sentir-se-á mais honrada com uma só carta do estilo
bárbaro de São Paulo, dirigida a seus cidadãos, do que por todas as
famosas arengas que outro dia escutara de Cícero."
Sim,
Roma, haveria de ouvir sua pregação e suas ruas calçadas de grandes
pedras seriam pisadas pelos pés do Apóstolo. Esses pés, entretanto,
arrastariam pesadas correntes que lhe tolheriam a liberdade dos
movimentos. Acusado pelo ódio de seus concidadãos, por causa de sua
fidelidade a Cristo, Paulo fora entregue à justiça romana. Se seu corpo
suportava as cadeias e os grilhões, sua alma sentia pesar sobre si o
suave jugo de Cristo. Prisioneiro do Espírito (cf. At 20, 22), Paulo
recebera, à noite, esta revelação: "Coragem! Deste testemunho de Mim em
Jerusalém, assim importa também que o dês em Roma" (At 23, 11).
Obediente
à inspiração recebida, Paulo exclamará no tribunal do governador Festo:
"Estou perante o tribunal de César. É lá que devo ser julgado. [...]
Apelo para César!" (At 25, 10-11). Querendo desfazer-se de caso tão
complicado, que envolvia assuntos da religião judaica, Festo apressou-
se em satisfazer o desejo do preso, mandando-o para Roma, algemado e sob
a guarda do centurião Júlio.
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O primeiro período de pregação em Roma
Durante
a viagem, Paulo não perdia a oportunidade de anunciar o Evangelho em
todos os lugares por onde passava. Após várias dificuldades ao longo da
travessia e enfrentar um naufrágio, fez escala em Siracusa, na Sicília, e
dali foi conduzido a Reggio (cf. At 28, 12-13).
Uma
vez chegado à capital do Império e instalado em prisão domiciliar,
Paulo realizava um anseio que havia tempos acalentava no coração, como
ele mesmo o expressara aos cristãos de Roma: "Daí o ardente desejo que
eu sinto de vos anunciar o Evangelho também a vós, que habitais em Roma"
(Rm 1, 15). Dois anos haveria de durar seu doloroso cativeiro, mas ele,
como afirma São João Crisóstomo, "considerava como brinquedo de criança
os mil suplícios, os tormentos e a própria morte, desde que pudesse
sofrer alguma coisa por Cristo". Aproveitou o tempo para pregar o Reino
de Deus (cf. At 28, 31), escrever numerosas cartas às comunidades da
Grécia e da Ásia, as chamadas Epístolas do cativeiro.
Mas
a Providência pedia de seu Apóstolo ainda mais alguns anos de abnegação
e fadigas, a ele que suspirava pela morte, considerando-a um lucro para
ganhar a Cristo (cf. Fl 1, 21).
Novas viagens e retorno à capital do Império
 |
O sublime imitador de Jesus Cristo sela seu testemunho com o próprio sangue.
"Martírio de São Paulo" - Paróquia de Maroggia (Itália) |
Libertado
por um decreto jurídico, Paulo ainda visitaria Creta, Espanha e
novamente as conhecidas igrejas da Ásia Menor, pelas quais tanto se
dedicara. Afinal voltaria a Roma para onde se sentia atraído, talvez por
um secreto pressentimento da proximidade da "coroa da justiça" (II Tm
4, 8) que ali o aguardava.
Sobre
o trono dos césares sentavase então o terrível Nero, cuja crueldade,
aliada a um orgulho patológico, já fizera sua fama. Era conhecido o ódio
que votava aos cristãos, e Paulo não passou despercebido à perspicácia
dos espiões do tirano.
Acusado
como chefe da seita, foi preso pela polícia imperial e lançado no
Cárcere Mamertino, onde, segundo uma antiga tradição, já se encontrava
Pedro. Nesse escuro subterrâneo, de estreitas dimensões e teto baixo, o
Pontífice da Igreja de Cristo e o Apóstolo das Gentes estiveram
acorrentados a uma mesma coluna. Assim, unidos numa mesma Fé e
esperança, estavam ambos amarrados pelas cadeias do amor ao Rochedo, que
é Cristo (cf. I Cor 10, 4).
Chegou
por fim o dia em que Paulo deveria "ser imolado" (II Tm 4, 6). Para ele
a morte pouco significava, pois já se achava morto para o pecado e vivo
para Deus (cf. Rm 6, 11). Uma entranhada e exclusiva união o ligavam a
seu Senhor. Não era ele mesmo que vivia, mas sim Cristo quem nele
habitava (cf. Gl 2, 20) e operava.
Condenado
à morte, Paulo, por ser cidadão romano, não podia, como Pedro, sofrer a
pena ignominiosa da crucifixão, mas sim a da decapitação, e esta devia
dar-se fora dos muros da cidade. Conduzido por um grupo de soldados, o
Apóstolo arrastou seus pesados grilhões ao longo da Via Ostiense e,
depois, pela Via Laurentina, até alcançar um distante vale, conhecido
pelo nome de Aquæ Salviæ.
Ali,
entre a vegetação daquela região pantanosa, o sublime imitador de Jesus
Cristo selava seu testemunho com o próprio sangue. Sua cabeça, ao cair
no solo sob o golpe fatal da espada, saltou três vezes, fazendo brotar
em cada um dos pontos uma fonte de água borbulhante. Este fato, se não
comprovado pela História, baseia- se numa piedosa tradição confirmada
pelo nome de Tre Fontane, que ostenta o mosteiro trapista construído
naquele local.
Paulo
morrera, mas sua monumental obra apostólica, fundamentada na caridade
que consumira sua vida, continuava viva e produziria ao longo dos tempos
abundantes frutos para a Igreja. Até o último alento, sua vida não fora
senão uma grande luta. Luta de entusiasmo e de entrega, de
desprendimento e de heroísmo; luta para levar o Evangelho a todas as
gentes, confiando sempre na benevolência de Cristo.
Os
piores vagalhões da vida não puderam atingir o seu tabernáculo
interior. Sua firmeza, semelhante à imobilidade de um rochedo batido
pelas ondas do mar, mantinhase inalterável em meio às maiores angústias e
agonias, certo de que nem a vida nem a morte o poderiam separar do amor
de Cristo (cf. Rm 8, 38-39).
E
uma vez concluído o combate, percorrida toda a sua carreira e chegado
ao termo de sua peregrinação terrena (cf. II Tm 4, 7), o Apóstolo
apareceu ante o olhar admirado da humanidade, em toda a sua estatura de
gigante da Fé, transmitindo para os séculos futuros esta mensagem: "Por
ora subsistem a fé, a esperança e a caridade - as três. Porém, a maior
delas é a caridade. A caridade jamais acabará!" (I Cor 13, 13.8). (Revista Arautos do Evangelho, Jun/2008, n. 78 e Jul/2008, n. 79)
Fonte: www.arautos.org
Link:
http://www.arautos.org/especial/17310/Solenidade-de-Sao-Pedro-e-Sao-Paulo.html