A liturgia do 20º Domingo do Tempo Comum repete o tema dos
últimos domingos: Deus quer oferecer aos homens, em todos os momentos da sua
caminhada pela terra, o “pão” da vida plena e definitiva. Naturalmente, os
homens têm de fazer a sua escolha e de acolher esse dom.
No Evangelho, Jesus reafirma que o objectivo final da sua
missão é dar aos homens o “pão da vida”. Para receber essa vida, os discípulos
são convidados a “comer a carne” e a “beber o sangue” de Jesus – isto é, a
aderir à sua pessoa, a assimilar o seu projecto, a interiorizar a sua proposta.
A Eucaristia cristã (o “comer a carne” e “beber o sangue” de Jesus) é um
momento privilegiado de encontro com essa vida que Jesus veio oferecer.
A primeira leitura oferece-nos uma parábola sobre um
banquete preparado pela “senhora sabedoria” para os “simples” e para os que
querem vencer a insensatez. Convida-nos à abertura aos dons de Deus e à
disponibilidade para acolher a vida de Deus (o “pão de Deus que desce do céu”).
A segunda leitura lembra aos cristãos a sua opção por Cristo
(aquele Cristo que o Evangelho de hoje chama “o pão de Deus que desceu do céu
para a vida do mundo”). Convida-os a não adormecerem, a repensarem
continuamente as suas opções e os seus compromissos, a não se deixarem
escorregar pelo caminho da facilidade e do comodismo, a viverem com empenho e
entusiasmo o seguimento de Cristo, a empenharem-se no testemunho dos valores em
que acreditam.
LEITURA I – Prov 9,1-6
Leitura do Livro dos Provérbios
A Sabedoria edificou a sua casa e levantou sete colunas.
Abateu os seus animais,
preparou o vinho e pôs a mesa.
Enviou as suas servas
a proclamar nos pontos mais altos da cidade:
«Quem é inexperiente venha por aqui».
E aos insensatos ela diz:
«Vinde comer do meu pão e beber do vinho que vos preparei.
Deixai a insensatez e vivereis;
segui o caminho da prudência».
AMBIENTE
O “Livro dos Provérbios” apresenta várias colecções de
ditos, de sentenças, de máximas, de provérbios (“mashal”) onde se cristaliza o
resultado da reflexão e da experiência (“sabedoria”) de várias gerações de
“sábios” antigos (israelitas e alguns não israelitas). O objectivo desses
provérbios é definir uma espécie de “ordem” do mundo e da sociedade que, uma
vez apreendida e aceite pelo indivíduo, o levará a uma integração plena no meio
em que está inserido. Dessa forma, o indivíduo poderá viver sem traumas nem
sobressaltos que destruam a sua harmonia interior e o incapacitem para dar o
seu contributo à comunidade. Ficará, assim, de posse da chave para viver em
harmonia consigo mesmo e com os outros, e assegurará uma vida feliz, tranquila
e próspera.
O livro apresenta-se como tendo sido composto por Salomão
(cf. Prov 1,1), o rei “sábio”, conhecido pelos seus dotes de governação, pelos
seus dons literários, por numerosas sentenças sábias (cf. 1 Re 3,16-28; 5,7;
10,1-9.23) e que se tornou uma espécie de “padrão” da tradição sapiencial… Na
realidade, não podemos aceitar, de forma acrítica, essa indicação: a leitura
atenta do livro revela que estamos diante de colecções de proveniência diversa,
compostas em épocas diversas. Alguns dos materiais apresentados no livro podem
ser do séc. X a.C. (época de Salomão; no entanto, isso não implica que venham
do próprio Salomão); outros, no entanto, são bem mais recentes.
O nosso texto integra uma secção que poderíamos chamar,
genericamente, “instruções e advertências” (cf. Prov 1,8-9,16). Trata-se de um
conjunto de exortações e de instruções de um pai/educador, convidando o filho a
adquirir a “sabedoria”. É dentro desta secção que nos aparece a antítese entre
a “senhora sabedoria” e a “senhora loucura” (cf. Prov 9,1-6.13-18) – um dos
textos emblemáticos do “Livro dos Provérbios”. A primeira leitura deste domingo
é, precisamente, a primeira parte da antítese (a apresentação da “senhora
sabedoria”).
Segundo os especialistas, esta secção é a parte mais recente
do “Livro dos Provérbios” e não pode ser anterior ao séc. IV ou III a.C.
Provavelmente, foi escrita como introdução ao “Livro dos Provérbios” quando
todas as outras secções já estavam organizadas.
MENSAGEM
O que está em causa, nesta reflexão dos “sábios” de Israel,
é a questão das opções de vida. Os homens podem escolher entre a “senhora
sabedoria” e a “senhora loucura” (que é apresentada também na sequência – cf.
Prov 9,13-18); e essa opção vai ditar, naturalmente, o êxito, a realização, a
felicidade, a vida, ou o inêxito, o fracasso, a desgraça, a morte.
O texto que nos é proposto é uma espécie de propaganda da
“senhora sabedoria”; a sua finalidade é levar os destinatários da mensagem a
realizarem a opção correcta – a opção que lhes garante a vida e a felicidade.
Através de uma parábola, o “sábio” autor deste texto apresenta a “senhora
sabedoria” e o convite que ela dirige a todos aqueles que querem descobri-la.
A “senhora sabedoria” é apresentada como uma dama fina, da
alta sociedade, que construiu uma “casa” (vers. 1). Essa “casa” tem,
naturalmente, “sete colunas”, pois o número sete é, no universo cultural
judaico, o número da plenitude, da perfeição. A “casa” da “senhora sabedoria”
é, portanto, uma “casa” onde se pode encontrar a perfeição, a plenitude.
Na sua “casa”, a “senhora sabedoria” organiza um “banquete”…
Prepara comida e vinho em abundância e põe a mesa (vers. 2); depois, envia as
suas servas para que levem a toda a cidade o convite para participar na festa
(vers. 3). Provavelmente, esta “casa” para onde a “dona sabedoria” convida é a
escola regida pelos “sábios” de Israel e onde se ensinava a “sabedoria”. A
“comida” e o “vinho” devem referir-se ao “alimento sapiencial” aí servido (quer
dizer, a essas regras práticas ensinadas pelos “sábios” nas escolas sapienciais,
e destinadas a “armar” os alunos para enfrentarem os problemas do dia a dia, de
forma a terem êxito nos seus empreendimentos e a serem felizes).
Quem são os destinatários do convite feito pela “senhora
sabedoria”? São os “simples” (na tradução que nos é proposta no Missal Romano,
fala-se dos “inexperientes) e os “insensatos” (vers. 4-6). Estes últimos,
porém, devem previamente estar dispostos a deixar a insensatez e a seguir o
“caminho da prudência”. Os “simples” equivalem aos “pobres” da literatura bíblica:
são os pequenos, os humildes, aqueles que não vivem instalados em esquemas de
orgulho e de auto-suficiência e têm sempre o coração aberto a Deus e às suas
propostas. Os “insensatos” que querem seguir o caminho da prudência são aqueles
que não se conformam com a sua fragilidade e debilidade e estão dispostos a
fazer um esforço no sentido de reformular a sua vida… Uns e outros têm o
coração aberto ao convite da “sabedoria” e estão dispostos a acolher os seus
dons.
ACTUALIZAÇÃO
• O que está aqui em causa é, portanto, a questão das opções
de vida. Optar pela “senhora sabedoria” significa escolher a vida, a
felicidade, a realização; optar pela “senhora loucura” significa escolher a
morte, a infelicidade, o fracasso… O problema das escolhas correctas é o problema
que mais nos angustia e inquieta, ao longo da nossa caminhada pela vida. A
Palavra de Deus que nos é proposta contém um convite inquestionável a irmos ao
banquete da “senhora sabedoria”, a alimentarmo-nos dos seus dons, a abrirmos o
coração às suas propostas. É esse o caminho da verdadeira realização e da
verdadeira felicidade.
• A “sabedoria” ensinada em Israel (bem como nos países
circunvizinhos) é um conjunto de normas práticas, deduzidas da experiência e da
reflexão, destinadas a formar homens íntegros, justos, leais, prudentes,
capazes de saber como actuar em cada circunstância e de cumprir a sua missão,
sem violar a ordem cósmica e social. Trata-se, apenas, de uma “sabedoria”
profana, de um humanismo, de um conjunto de regras para orientar o comportamento
e as relações sociais, sem qualquer referência ao mundo transcendente? Que
lugar é que Deus ocupa nesta reflexão? Deus será necessário ao homem que quer
ser “sábio”? O “sábio” israelita é também um crente, com tudo o que isso
implica. Ao longo do Livro dos Provérbios, os “sábios” de Israel afirmam
repetidamente que o verdadeiro fundamento da “sabedoria” é o “temor de Deus”
(cf. Prov 10,27; 14,26; 15,16.33; 16,6; 19,23; 22,4; 23,17; 24,21; 31,30), como
se considerassem que Deus não pode ser excluído da vida do homem que quer ter
êxito e ser feliz. O termo “temor” não acentua (como nas línguas modernas) a
dimensão do “medo”; mas indica uma atitude do crente diante de Deus
caracterizada pela reverência, pelo respeito, pela obediência, pela confiança.
Ora, de acordo com os “sábios” do “Livro dos Provérbios”, essa atitude
religiosa face a Deus é condição indispensável para a aquisição de uma
“sabedoria” genuína, de um verdadeiro conhecimento. Não há, pois, “sabedoria”
autêntica sem uma abertura decidida à transcendência. Todos nós queremos,
naturalmente, aceitar o convite da “senhora sabedoria”, saborear os alimentos
que ela nos oferece e munir-nos dos instrumentos necessários para triunfar na
vida, para alcançar a realização e a felicidade; no entanto, com frequência,
buscamos a nossa realização plena e a nossa felicidade contra Deus ou, pelo
menos, à margem de Deus e dos seus valores… Para nós, crentes, o encontro com a
“senhora sabedoria” passa pela escuta de Deus e dos seus planos, pela entrega
confiada nas mãos de Deus, pela obediência radical às propostas de vida que
Deus nos faz. Não poderemos chegar à nossa realização plena ignorando Deus e as
suas propostas.
• É por isso que só os “simples” e os “insensatos que querem
deixar a insensatez e seguir o caminho da prudência” são admitidos à mesa da
“senhora sabedoria”. Os “simples” são aqueles que não têm o coração demasiado
cheio de si próprio, que não se fecham no orgulho e na auto-suficiência, que
reconhecem a sua pequenez e finitude e que se entregam com humildade e
confiança nas mãos de Deus; os “insensatos que buscam o caminho da prudência”
são aqueles que estão dispostos a mudar, que não se conformam com a vida do
homem velho e querem ir mais além… Uns e outros são o paradigma de uma
determinada atitude: a atitude de abertura aos dons de Deus, de disponibilidade
para acolher a vida de Deus… São aqueles que reconhecem que precisam de Deus e
dos seus dons pois, por si sós, são incapazes de encontrar o caminho para a
realização, para a felicidade, para a vida plena.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 33 (34)
Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.
A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.
Temei o Senhor, vós os seus fiéis,
porque nada falta aos que O temem.
Os poderosos empobrecem e passam fome,
aos que procuram o Senhor não faltará riqueza alguma.
Vinde, filhos, escutai-me,
vou ensinar-vos o temor do Senhor.
Qual é o homem que ama a vida,
que deseja longos dias de felicidade?
Guarda do mal a tua língua
e da mentira os teus lábios.
Evita o mal e faz o bem,
procura a paz e segue os seus passos.
LEITURA II – Ef 5,15-20
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios
Irmãos:
Vede bem como procedeis.
Não vivais como insensatos, mas como pessoas inteligentes.
Aproveitai bem o tempo, porque os dias que correm são maus.
Por isso não sejais irreflectidos,
mas procurai compreender qual é a vontade do Senhor.
Não vos embriagueis com o vinho, que é causa de luxúria,
mas enchei-vos do Espírito Santo,
recitando entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais,
cantando e salmodiando em vossos corações,
dando graças, por tudo e em todo o tempo, a Deus Pai,
em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
AMBIENTE
A segunda leitura deste domingo apresenta-nos, mais uma vez,
um texto dessa carta que Paulo enviou da prisão (de Roma?) a diversas
comunidades cristãs da zona ocidental da Ásia Menor (entre as quais se contava
a comunidade cristã de Éfeso).
O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Ef
4,1-6,20). Nessa “exortação aos baptizados”, Paulo retoma alguns dos temas
tradicionais do catecismo primitivo e convida os cristãos a deixarem a antiga
forma de viver para assumir a nova, revestindo-se de Cristo (cf. Ef 4,17-31),
imitando Deus (cf. Ef 4,32-5,2), passando das trevas à luz (cf. Ef 5,3-20).
Como cenário de fundo da reflexão paulina está sempre a necessidade de os
cristãos deixarem a vida do homem velho, para assumirem a vida do Homem Novo. É
neste sentido que devem ser entendidos essas normas práticas de conduta que
Paulo apresenta aos seus cristãos no texto que nos é proposto.
Estamos no início da década de 60… Passou já o entusiasmo
inicial que levou muitos crentes (os de Éfeso também) a uma adesão entusiástica
a Jesus e à sua proposta de vida… Agora, a monotonia, a instalação, o comodismo
são realidades que estão presentes em muitas comunidades e na vida de muitos
cristãos. Embora preso, Paulo continua a preocupar-se com a vida dos cristãos e
das comunidades que ele acompanhou; por isso, vai exortar os crentes a uma vida
de coerência com os compromissos um dia assumidos diante de Cristo e diante dos
irmãos da comunidade.
MENSAGEM
O nosso texto é antecedido pelo fragmento de um antigo hino
cristão que convida os crentes a despertarem do sono em que jazem e a
redescobrirem a luz de Cristo (cf. Ef 5,14). O que é que significa, na
perspectiva de Paulo, acordar de novo para a luz, ou o viver como “filhos da
luz”?
Os cristãos, definitivamente comprometidos com Cristo desde
o dia do seu Baptismo, não podem, estupidamente (“como insensatos” – vers. 15),
voltar aos valores do homem velho. É verdade que os tempos não são favoráveis e
não ajudam a que se viva com coerência a própria fé e os valores de Jesus; mas
é precisamente nesses ambientes mais difíceis e adversos que se torna mais
necessário dar testemunho dos projectos de Deus e cumprir a vontade do Senhor
(vers. 16-17).
“Não vos embriagueis com vinho, que leva à vida desregrada,
mas deixai-vos encher do Espírito” (vers. 18) – aconselha Paulo. O “vinho”
representa aqui, provavelmente, todos esses valores materiais que seduzem os
homens, que os levam ao desregramento e que os fazem esquecer os seus
compromissos; o Espírito significa a vida de Deus – essa vida que os crentes
receberam no dia do seu Baptismo, que deve encher os seus corações e que deve
transformar-se em gestos de amor e de doação a Deus e aos irmãos.
O nosso texto termina com um convite à oração, ao louvor, à
acção de graças ao Senhor. Os crentes não podem esquecer a sua ligação ao
Senhor e o seu diálogo com Ele, pois é esse diálogo que os mantém atentos e
vigilantes, comprometidos com o projecto de Deus. Quando a oração é feita em
comunidade, ela torna-se partilha mútua e uma caminhada comum na descoberta dos
planos de Deus para os homens e para o mundo (vers. 19-20).
ACTUALIZAÇÃO
• A tentação da acomodação, da instalação, do “deixar
correr”, do viver o seguimento de Cristo de forma “morna” e pouco empenhada, do
deixarmo-nos envolver por comportamentos e valores pouco consentâneos com o
nosso compromisso com Cristo, é uma tentação real e que todos nós conhecemos
bem. Como diz Paulo, é uma estupidez termos descoberto a vida verdadeira e
deixarmos que o homem velho do egoísmo e do pecado nos domine de novo… O texto
da Carta aos Efésios que nos é proposto é um convite a não adormecermos, a
repensarmos continuamente as nossas opções e os nossos compromissos, a não nos
deixarmos escorregar pelo caminho da facilidade e do comodismo, a vivermos com
empenho e entusiasmo o seguimento de Cristo, a empenharmo-nos no testemunho dos
valores em que acreditamos. A opção que fizemos no dia do nosso Baptismo tem de
ser confirmada e revitalizada por uma infinidade de novas opções, todos os dias
da nossa vida.
• Paulo recomenda aos seus cristãos que não se embriaguem
“com vinho, que leva à vida desregrada”. Dizíamos acima que o embriagar-se com
“vinho” representa, nestas circunstâncias, o deixar-se seduzir por esses
valores materiais que afastam os homens dos valores eternos, dos valores do
Reino… Pessoalmente, quais são os valores a que eu dou mais importância? Algum
desses valores constitui um obstáculo para que eu viva, de forma
verdadeiramente comprometida, os valores de Jesus e do Evangelho?
• O viver como “filhos da luz” implica ainda, na perspectiva
de Paulo, a oração, o louvor, a acção de graças. Um crente que tem Deus como a
coordenada fundamental da sua existência e que se sente chamado a fazer parte
da família de Deus é um crente que vive em diálogo contínuo com Deus. É nesse
diálogo que ele percebe os planos e os projectos de Deus para si próprio e para
o mundo e encontra a coragem para percorrer o caminho da fidelidade e do
compromisso. Consigo encontrar tempo e disponibilidade para falar com Deus,
para escutar as propostas que Ele me apresenta? Estou consciente dos dons de
Deus e respondo-Lhe com o louvor e a acção de graças?
EVANGELHO – Jo 6,51-58
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».
Os judeus discutiam entre si:
«Como pode ele dar-nos a sua carne a comer?»
E Jesus disse-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Se não comerdes a carne do Filho do homem
e não beberdes o seu sangue,
não tereis a vida em vós.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
tem a vida eterna;
e Eu o ressuscitarei no último dia.
A minha carne é verdadeira comida
e o meu sangue é verdadeira bebida.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
permanece em Mim e eu nele.
Assim como o Pai, que vive, Me enviou
e eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come viverá por Mim.
Este é o pão que desceu do Céu;
não é como o dos vossos pais, que o comeram e morreram:
quem comer deste pão viverá eternamente».
AMBIENTE
O trecho que nos é proposto neste domingo como Evangelho
situa-nos ainda na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6,59) e no contexto do
discurso sobre o “pão que desceu do céu para dar vida ao mundo”. Neste trecho,
no entanto, Jesus vai um pouco mais além: convida os seus interlocutores a
comer a sua carne e a beber o seu sangue.
Alguns biblistas pensam que esta parte do discurso é uma
reflexão da primitiva comunidade cristã que reinterpretou a primeira parte do
discurso, explicitando-a a partir da celebração eucarística posterior; outros
pensam que João reelaborou uma série de materiais que estariam inicialmente
incluídos no relato da última ceia e que foram deslocados para aqui por
conveniências teológicas (na sua versão da última ceia, João preferiu dar
relevo à lavagem dos pés; contudo, não quis omitir o discurso eucarístico de
Jesus, um dado tão importante para a tradição cristã. Sendo assim, transladou-o
para outro lugar; e o lugar mais indicado para o situar pareceu-lhe ser,
precisamente, na continuação do discurso sobre o “pão descido do céu para dar
vida ao mundo”). Em qualquer caso, esta parte do discurso (cf. Jo 6,51-58) não
deve ter sido feita na sinagoga de Cafarnaum… Ela só faz sentido após a
instituição da Eucaristia, na última ceia.
O discurso sobre o “pão da vida” (cf. Jo 6,22-58) ficou,
portanto, no esquema de João, com o seguinte enquadramento lógico: os homens
buscam o pão material; Jesus traz-lhes o “pão do céu que dá vida ao mundo”; e o
pão eucarístico realiza, de forma plena, a missão de Jesus no sentido de dar
vida ao homem.
MENSAGEM
Depois de Se apresentar como “o pão vivo que desceu do céu”
para dar aos homens a vida definitiva (vers. 51a), Jesus identifica esse “pão”
com a sua “carne” (vers. 51b). A palavra “carne” (em grego: “sarx”) designa a
realidade física do homem, na sua condição débil, transitória e caduca. Ora,
foi precisamente na “carne” de Jesus – isto é, no seu corpo físico – que se
manifestou, em gestos concretos, a sua doação e o seu amor até ao extremo. Na
realidade física de Jesus, Deus tornou-Se presente e visível no meio dos
homens, mostrou a sua vontade de comunicar com os homens e manifestou-lhes o
seu amor. É esta “carne” (isto é, a sua vida física, o “lugar” onde Deus Se
manifesta aos homens e lhes mostra o seu amor) que Jesus vai dar a “comer” para
que o mundo tenha vida.
Os judeus não entendem as palavras de Jesus (vers. 51).
Quando Jesus Se apresentou como “pão vivo descido do céu para dar a vida ao
mundo”, eles entenderam que Jesus pretendia ser uma espécie de “mestre de
sabedoria” que trazia aos homens palavras de Deus (também isso, eles tinham
dificuldade em aceitar; mas, pelo menos, entendiam aonde Ele queria chegar)…
Mas agora Jesus fala em “comer” a sua carne. O que significam as suas palavras?
São palavras difíceis de entender, se não nos colocarmos numa perspectiva
eucarística; e, por isso, os judeus não as entendem… Para a comunidade de João,
contudo, as palavras de Jesus são claras, pois são entendidas tendo em conta a
celebração e o significado da Eucaristia.
Na sequência, Jesus reitera a sua afirmação, desta vez com
mais desenvolvimentos: Ele não só vai dar a “comer” a sua carne, mas também a
beber o seu sangue; e quem os aceitar recebe vida definitiva (vers. 53-54). A
referência ao “sangue” coloca-nos no contexto da paixão e da morte. Dizer que
Jesus é “carne” significa que Ele Se tornou pessoa como nós, assumiu a nossa
condição de debilidade, aceitando passar, até, pela experiência da morte. Dizer
que o pão que Ele há-de dar é a sua “carne para a vida do mundo” significa que
Jesus fez da sua vida um dom, uma “entrega” por amor aos homens; e que o
momento mais alto dessa vida feita “dom” e “entrega” é a morte na cruz. Na
cruz, manifestou-se, através da “carne” de Jesus – isto é, através da sua realidade
física – o seu amor, o seu dom, a sua entrega… Ora, é essa realidade que se
manifestou na cruz – realidade de amor, de doação, de entrega – que os
discípulos são convidados a “comer” e a “beber”. “Comer” e “beber” significam,
neste contexto, “aderir”, “acolher”, interiorizar”, “assimilar”.
A questão é, portanto, esta: Jesus não está a falar da sua
“carne” física e do seu “sangue” físico… Está a pedir, simplesmente, que os
seus discípulos acolham e assimilem essa vida de amor, de dom, de entrega, que
Ele mostrou na sua pessoa (isto é, nos seus gestos, no seu amor, na sua doação
aos homens) e que teve a sua expressão mais radical na cruz, quando Jesus, por
amor, ofereceu totalmente a sua vida, até à última gota de sangue. Quem
“acolher” e “assimilar” esta vida e aceitar viver da mesma forma – no amor e no
dom total da vida, até à morte – terá vida plena e definitiva.
A Eucaristia actualiza esta realidade na comunidade cristã e
na vida dos crentes. Esse mesmo Jesus que amou até às últimas consequências,
que pôs a sua vida ao serviço dos homens, que Se deu na cruz, oferece-Se como
alimento aos seus. O discípulo que “come” e “bebe” a sua “carne” e o seu
“sangue” assimila esta proposta e compromete-se a viver e a dar a vida como Ele
(vers. 55).
Um dos efeitos de “comer a carne” e “beber o sangue” de
Jesus é ficar em união íntima, em comunhão de vida com Jesus. O discípulo que
interioriza a proposta de Jesus identifica-se com Ele e torna-se um com Ele
(vers. 56). O cristão é, antes de mais, alguém que recebe vida de Jesus e vive
em união com Ele.
Outro efeito de “comer a carne” e “beber o sangue” de Jesus
é comprometer-se com o mesmo projecto de Jesus. Jesus Cristo foi enviado pelo
Pai ao mundo para dar vida ao mundo e o seu plano consiste em concretizar esse
projecto; o cristão assimila esse mesmo projecto e dedica toda a sua existência
a concretizá-lo no meio dos homens (vers. 57).
É neste caminho que se chega a essa vida plena e definitiva
que Jesus veio propor aos homens. Do “comer a carne” e “beber o sangue” de
Jesus nascerá uma nova humanidade de gente livre, que venceu a morte e que vive
para sempre (vers. 58).
O discurso que João põe na boca de Jesus não se dirige aos
judeus (pois os judeus não eram capazes de entender as palavras de Jesus), mas
dirige-se aos discípulos. O seu objectivo é explicar o programa de Jesus, pedir
aos discípulos que assimilem esse programa e o testemunhem no meio dos homens.
A Eucaristia cristã (“comer a carne” e beber o sangue”) é, assim, uma forma
privilegiada de “actualizar” na vida dos crentes a vida e o amor de Jesus, de
estar em comunhão com Jesus, de “assimilar” o projecto de Jesus e de o
concretizar no mundo.
ACTUALIZAÇÃO
• Nas semanas anteriores, a liturgia disse-nos,
repetidamente, que Jesus era o “pão descido do céu para dar vida ao mundo”… O
Evangelho deste domingo liga esta afirmação com a Eucaristia: uma das formas
privilegiadas de Jesus continuar presente, no tempo, a “dar vida” ao mundo é
através do “pão” que Ele distribui à mesa da Eucaristia. A Eucaristia que as
comunidades cristãs celebram cada domingo (ou mesmo cada dia) não é um rito
tradicional a que “assistimos” por obrigação, para acalmar a consciência ou para
cumprir as regras do “religiosamente correcto”; mas é um encontro com esse
Cristo que Se faz “dom” e que vem ao nosso encontro para nos oferecer a vida
plena e definitiva. Como é que eu “sinto” a Eucaristia? Que importância é que
ela assume na minha vida e na minha existência cristã?
• Participar no encontro eucarístico, “comer a carne” e
“beber o sangue” de Jesus é encontrar-se, hoje, com esse Cristo que veio ao
encontro dos homens e que tornou presente na sua “carne” (na sua pessoa física)
uma vida feita amor, partilha, entrega, até ao dom total de si mesmo na cruz
(“sangue”). Participar no encontro eucarístico, “comer a carne” e “beber o
sangue” de Jesus, é acolher, assimilar e interiorizar essa proposta de vida,
aceitar que ela é um caminho para a felicidade, para a realização plena do
homem, para a vida definitiva.
• Sentar-se à mesa da Eucaristia é também identificar-se com
Jesus, viver em união com Ele. Na Eucaristia, o alimento servido é o próprio
Cristo. Por isso, é a própria vida de Cristo que passa a circular nas veias dos
crentes. Quem acolhe essa vida que Jesus oferece torna-se, portanto, um com
Ele. Comer cada domingo (ou cada dia) à mesa com Jesus desse alimento que Ele
próprio dá e que é a sua pessoa, leva os crentes a uma comunhão total de vida
com Jesus e a fazer parte da família do próprio Jesus. Convém termos
consciência desta realidade: celebrar a Eucaristia é aprofundarmos os laços
familiares que nos unem a Jesus, identificarmo-nos com Ele, deixarmos que a sua
vida circule em nós. Este crente, identificado com Cristo, torna-se uma pessoa
nova, à imagem de Cristo.
• Na concepção judaica, a partilha do mesmo alimento à volta
da mesa gera entre os convivas familiaridade e comunhão. Assim, os crentes que
participam da Eucaristia passam a ser irmãos: em todos circula a mesma vida, a
vida do Cristo do amor total. Dessa forma, a participação na Eucaristia tem de
resultar no reforço da comunhão dos irmãos. Uma comunidade que celebra a
Eucaristia e que vive depois na divisão, no ciúme, no conflito, no orgulho, na
auto-suficiência, na indiferença para com as dores e as necessidades dos
irmãos, é uma comunidade que não está a ser coerente com aquilo que celebra; e,
nesse caso, a celebração eucarística é uma incoerência e uma mentira.
• Finalmente, o “comer a carne” e “beber o sangue” de Jesus
implica um compromisso com esse mesmo projecto que Jesus procurou concretizar
em toda a sua vida, em todos os seus gestos, em todas as suas palavras. Como
Jesus, o crente que celebra a Eucaristia tem de levar ao mundo e aos homens
essa vida que aí recebe… Tem de lutar, como Jesus, contra a injustiça, o
egoísmo, a opressão, o pecado; tem de esforçar-se, como Jesus, por eliminar
tudo o que desfeia o mundo e causa sofrimento e morte; tem de construir, como
Jesus, um mundo de liberdade, de amor e de paz; tem de testemunhar, como Jesus,
que a vida verdadeira é aquela que se faz amor, serviço, partilha, doação até
às últimas consequências. Se a Eucaristia for, de facto, uma experiência
profunda e sentida de adesão a Cristo e ao seu projecto, dela resultará o
imperativo de uma entrega semelhante à de Cristo em favor dos nossos irmãos e da
construção de um mundo novo.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 20º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)
1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 20º Domingo do Tempo
Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
O conviva é aquele que “vive com” o tempo de uma refeição.
Jesus faz continuamente referência à relação que O une a seu Pai; eles vivem a
convivência, Eu vivo pelo Pai”, diz Jesus. Mas acrescenta: “também aquele que
Me come viverá por Mim”. Em cada Eucaristia, não estamos ao lado de Cristo
ressuscitado, Ele vem morar em nós para viver em nós. Temos de dizer, como São
Paulo: “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. É isso a comunhão, esta
união total. É o momento de dizer: “Este mistério é grande!” É grande, porque
nunca acabaremos de nos maravilhar e de dar graças. Hoje, se Cristo vem habitar
em nós, é para que nós habitemos n’Ele. Vivamos as nossas Eucaristias
verdadeiramente como um tempo de convivência.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Jesus é insistente: não pára de repetir que os seus
discípulos devem comer a sua carne e beber o seu sangue! Ainda hoje, tal
linguagem é chocante, inaceitável para a nossa razão e para a nossa
sensibilidade. Sabemos, é certo, que São João escreve depois da Ressurreição e
que as palavras de Jesus só se podem aceitar e compreender a essa luz. Uma das
palavras-chave do discurso de Jesus é “morar”: aqui e em tantas passagens do
Evangelho… Morar com alguém é entrar na sua intimidade, para ficar juntos. É
isso que Deus quer: “estar com” com os homens, “Emanuel”, para que nós
estejamos também com Ele. Não podemos aceder ao sentido profundo das palavras
de Jesus sobre a sua carne a comer e o seu sangue a beber se não nos colocarmos
no registo do amor que exige a presença, o “estar com” dos dois seres que se
amam. No amor, é tudo ou nada. O seu amor por nós é tal que Ele quer dar-Se na
totalidade do seu ser e quer que esse dom dure sempre. Esta experiência já
acontece humanamente: num momento de intensa comunhão com o ser amado,
desejamos ardentemente que isso dure sempre. Ao escolher o meio do banquete
eucarístico para colocar em nós a sua presença de Ressuscitado, Jesus quer
enraizar-Se em nós e alimentar o gérmen da Vida eterna que será doravante a
sua. Eis porque Ele pode afirmar: “quem comer deste pão viverá eternamente”.
Participar na Eucaristia, comungar do corpo e do sangue de Jesus ressuscitado,
é oferecer-Lhe o nosso “espaço humano” muito concreto, toda a nossa pessoa para
que Ele venha habitar em nós. Então podemos, desde agora, ser um com Ele: “já não
sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim!”.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
O importante é viver e partilhar a vida. Nesta semana,
poderíamos estar particularmente atentos àqueles que têm dificuldade em viver,
porque o seu sofrimento é demasiado pesado… Talvez poderemos, simplesmente,
estar presentes a seu lado e dizer-lhes uma palavra de vida, algumas palavras
do coração que saibam reacender a esperança.
FONTE: http://www.dehonianos.org
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