domingo, 4 de março de 2012

Sugestões para a homilia - 2º domingo de Quaresma - Ano B

Introdução
Continuamos hoje as homilias de carácter mais doutrinal, que começámos a oferecer para os Domingos do Advento.
Como em todos os anos, no 2º Domingo da Quaresma faz-se a leitura do Evangelho da Transfiguração, hoje segundo a narrativa de S. Mateus, o evangelista do ano. Este é um texto paralelo ao da narração do Baptismo de Jesus, em que, pela primeira vez, aparece a revelação explícita do mistério da vida no interior de Deus, a Santíssima Trindade.
Deus tem vida; se não tivesse vida, não seria Deus. E, como é Deus, a sua vida é infinita e incompreensível e misteriosa. Nós nunca saberíamos nada da vida de Deus, se não fosse Ele a manifestar-se como Ele é, o que aconteceu com a vinda do Filho de Deus à terra.

O único Deus é Pai, Filho e Espírito Santo
Que Deus é Pai é uma verdade comum a muitas religiões, ao reconhecerem-no como o Criador do Universo, que cuida da sua obra; por isso dizia Tertuliano que «ninguém é tão pai como Deus». Mas a grande novidade é a que temos no Evangelho de hoje: Deus aparece como o Pai que apresenta o seu «Filho muito amado», um Filho num sentido absolutamente original – «o Unigénito» (Jo 1, 14.18; 3, 16.18) – que desde sempre estava em Deus, sendo Deus (cf. Jo 1, 1), a «imagem do Deus invisível» (Col 1, 15), «o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância» (Hebr 1, 3). O Evangelho de S. João usa mesmo uma palavra para designar este Filho Unigénito (Υἱός) diferente da palavra que emprega para indicar os homens como filhos de Deus (τέκνα) A fé que professamos no Credo, que a seguir vamos proclamar, diz que este Filho é «consubstancial ao Pai», isto é, da mesma natureza que o Pai, sendo um só com Ele: «Filho Único de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado…».
Mas a vida em Deus não se esgota na relação Pai-Filho, pois o circuito da vida íntima de Deus engloba também o Espírito Santo, «que procede do Pai e do Filho, e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado». Jesus falou do Espírito Santo, dizendo que «procede do Pai e que Eu vos hei-de enviar da parte do Pai» (Jo 15, 26). Jesus enviou os Apóstolos a todos os povos para baptizarem «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», indicado assim que deste modo ficamos a participar da vida do único Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo.
É na Igreja que entramos em comunhão com a vida íntima de Deus
Uma saudação que hoje se costuma usar no início da celebração eucarística corresponde àquela já usada por S. Paulo nas cartas que escrevia às suas comunidades: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai, e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós» (2 Cor 13, 13; cf. 1 Cor 12, 4-6; Ef 4, 4-6).
É pelo Baptismo que passamos a fazer parte da Igreja; e o Concílio Vaticano II começa por apresentar a Igreja na sua ligação intrínseca com a Santíssima Trindade, ao concluir os primeiros números da Constituição Dogmática sobre a Igreja: «Assim a Igreja toda aparece como um “povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”» (LG 4). A Igreja não tem uma origem humana, mas procede dum plano eterno do amor de Deus, que destina o ser humano à comunhão na riqueza da sua vida trinitária.

Como é que Deus pode ser um e três ao mesmo tempo?
A fé na Santíssima Trindade não implica uma contradição, pois não é como se disséssemos 1+1+1=1; com efeito o Pai não se soma ao Filho e ao Espírito Santo, pois são o único e mesmo Deus e compenetram-se numa mesma torrente de vida eterna, num mesmo abismo de sabedoria e amor; recorrendo à linguagem matemática, diríamos antes: 1x1x1=1.
O transcendente mistério da Santíssima Trindade não é algo que afasta o crente de Deus – tão incompreensível Ele é –, mas, pelo contrário, é um mistério fascinante, que exerce nas almas enamoradas de Deus uma espécie de santa vertigem, uma antecipação do Céu: a atracção do abismo da grandeza e misericórdia divinas. Se Deus é quem é – o Ser infinito – tem que ser sumamente amável, ainda que incompreensível.
Como se exprime em linguagem humana um mistério tão grande da vida íntima de Deus: uno e trino?
Sucede que a Igreja, desde os primeiros séculos, se preocupou com formular a sua fé recebida de Jesus e do ensino dos Apóstolos, de maneira a tornar inteligível o que poderia parecer um absurdo paradoxo. Ao mesmo tempo, a Igreja procurava preservar a sua fé da contaminação de erros que a tentavam deformar. Para isso, socorreu-se duma série de termos que não aparecem nas Escrituras, mas que pertencem à linguagem filosófica da cultura grega ambiente. Foi assim que adoptou o termosubstância (correspondente a essência ou natureza) para designar o ser divino na sua unidade; por outro lado, empregou o termo pessoa, ou hipóstase, para designar o Pai, o Filho e o Espírito Santo na sua distinção real entre si. O termo relação serviu para designar o facto de que a distinção das pessoas consiste numa referencia vital de uns aos outros. Dizemos que em Deus há três pessoas, mas com isto não queremos dizer que em Deus haja três indivíduos, como quando se fala de três pessoas humanas; o que queremos é dizer que em Deus há três sujeitos que são uma só coisa. Mas como se pode entender isto?
A reflexão teológica tem procurado esclarecer ao máximo este tão grande mistério do que é a vida de Deus na «trindade de uma só natureza», tomando como ponto de partida as palavras de Jesus e o ensino dos Apóstolos. As três Pessoas são iguais – uma mesma e única divindade – e são distintas: o Pai não é o Filho, o Filho não é o Espírito Santo, o Espírito Santo não é o Pai, mas apenas se distinguem no que a Teologia classificou de “relações opostas de origem”, relações estas que derivam de o Filho proceder do Pai e o Espírito Santo do Pai e do Filho (ou pelo Filho).
Em tudo o mais não há a mínima distinção, a tal ponto que tudo o que Deus faz fora de si é comum às três Pessoas divinas, embora nós possamos apropriar de alguma delas em particular uma determinada acção ou atributo divino: para o Pai, a omnipotência e a criação; para o Filho, a sabedoria e todas as obras da sabedoria divina; para o Espírito Santo, o amor, a santificação do homem, a inspiração das Escrituras, etc.
Como diz o Catecismo da Igreja Católica , nº 267: «Inseparáveis no que são, as Pessoas divinas são também inseparáveis no que fazem. Mas, embora sendo a actuação divina uma única coisa em que intervêm as três Pessoas, a verdade é que cada uma manifesta o que Lhe é próprio na Trindade, sobretudo nas missões divinas da Incarnação e do dom do Espírito Santo».
E que tem que ver a vida íntima de Deus com a nossa vida? Poderemos relacionar-nos com cada uma das Pessoas divinas?
São João diz que Deus é amor (1 Jo 4, 8.16). O Pai, «ao enviar-nos o seu Filho Único e o Espírito de Amor, revela o seu segredo mais íntimo: Ele próprio é eternamente comunhão de amor: Pai, Filho e Espírito Santo; e destinou-nos a tomar parte nessa comunhão». Se Deus é uma eterna comunicação de Amor, é compreensível que esse Amor transborde para fora d’Ele na sua actuação.
«“Na Trindade encontra-se o modelo original da família humana” (João Paulo II) e a sua vida íntima é a aspiração verdadeira de todo o amor humano… Cada pessoa foi criada à imagem e semelhança da Trindade (cf. Gn 1, 27) e está feita para viver em comunhão com os outros homens e, sobretudo, com o Pai Celestial. Aqui se encontra o fundamento último do valor da vida de cada pessoa humana, independentemente das suas capacidades ou das suas riquezas» (Giulio Maspero).
Deus destina-nos ao Céu. E o Céu consiste em ver a Deus «tal como Ele é» (1 Jo 3, 2), contemplar, louvar, amar e gozar por toda a eternidade da vida infinita da Trindade Santíssima; é entrar nesse circuito infinito de Amor sem fim que une as Pessoas divinas. Viver aqui na graça de Deus já é o começo dessa felicidade do Céu. (cf. Jo 14, 23). É assim que os santos são as pessoas mais felizes do mundo, mesmo no meio dos maiores sofrimentos, pois vivem desta certeza de que Deus habita dentro deles.
As orações da Liturgia, em especial a oração eucarística, são habitualmente dirigidas à pessoa do Pai, por meio do Filho, em união com o Espírito Santo, a alma da nossa alma, a alma da Igreja. Há uma festa dedicada à SS. Trindade, no domingo imediato ao do Pentecostes, mas todos os domingos são dedicado a Ela. Aprendamos a saborear a dimensão trinitária de Missa: «Por Cristo, com Cristo, em Cristo…» e façamos do nosso dia um «Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo», repetindo muitas vezes esta jaculatória.
Todos os cristãos começamos o dia benzendo-nos: «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo»; assim queremos dedicar todos os nossos pensamentos, palavras e acções a honrar a Deus, Trindade Santíssima, actualizando assim a nossa consagração baptismal, pois fomos baptizados, isto é, mergulhados, consagrados para Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo.
Também nos benzemos ao entrar numa igreja, para nos recordarmos de que é na Igreja de Cristo que nós estamos capacitados para viver como filhos de Deus e que é nela que aurimos a graça de Deus nas fontes de vida divina que são os Sacramentos. Traçamos o sinal da Cruz ao benzermo-nos para recordar a ligação que há entre a Cruz de Jesus a o mistério da vida de Deus, que é um abismo infinito de amor, de doação mútua, de que a máxima expressão visível é a entrega que o Pai nos faz do seu Filho na Cruz para nos dar o Espírito Santo a habitar dentro de nós como num templo. Ao fazermos nesta Quaresma o exercício da Via Sacra, procuremos vivê-la enquadrada na sua dimensão trinitária original.

Fala o Santo Padre
«Jesus manifesta aos Apóstolos a sua glória, para que tenham a força de enfrentar o escândalo da cruz.»
Queridos irmãos e irmãs!
[…] Hoje, segundo domingo da Quaresma, prosseguindo o caminho penitencial, a liturgia, depois de nos ter apresentado no domingo passado o Evangelho das tentações de Jesus no deserto, convida-nos a reflectir sobre o acontecimento extraordinário da Transfiguração na montanha. Considerados juntos, os dois episódios antecipam o mistério pascal: a luta de Jesus com o tentador introduz o grande duelo final da Paixão, enquanto a luz do seu Corpo transfigurado antecipa a glória da Ressurreição. Por um lado vemos Jesus plenamente homem, que partilha connosco até a tentação, por outro, contemplamo-lo como Filho de Deus, que diviniza a nossa humanidade. Deste modo, poderíamos dizer que estes dois domingos servem de pilares sobre os quais se baseia todo o edifício da Quaresma até à Páscoa, e aliás, toda a estrutura da vida cristã, que consiste essencialmente no dinamismo pascal: da morte à vida.
A montanha – o Tabor como o Sinai –  é o lugar da proximidade com Deus. É o espaço elevado, em relação à existência quotidiana, onde respirar o ar puro da criação. É o lugar da oração, no qual estar na presença do Senhor, como Moisés e como Elias, que aparecem ao lado de Jesus transfigurado e falam com Ele acerca do “êxodo” que o espera em Jerusalém, isto é, da sua Páscoa. A Transfiguração é um acontecimento de oração: rezando, Jesus imerge-se em Deus, une-se intimamente a Ele, adere com a própria vontade humana à vontade de amor do Pai, e assim a luz invade-o e torna-se visível a verdade do seu ser: Ele é Deus, Luz da Luz. Também a veste de Jesus se torna branca e resplandecente. Isto faz pensar no Baptismo, na veste branca que os neófitos traziam. Quem renasce no Baptismo é revestido de luz antecipando a existência celeste, que o Apocalipse representa com o símbolo das vestes brancas (cf. Ap 7, 9.13). Encontra-se aqui o ponto central: a transfiguração é antecipação da ressurreição, mas esta pressupõe a morte. Jesus manifesta aos Apóstolos a sua glória, para que tenham a força de enfrentar o escândalo da cruz e compreendam que é preciso passar através de muitas tribulações para alcançar o Reino de Deus. A voz do Pai, que ressoa do alto, proclama Jesus seu Filho predilecto como no Baptismo no Jordão, acrescentando: “Ouvi-O” (Mt 17, 5). Para entrar na vida eterna é preciso ouvir Jesus, segui-lo pelo caminho da cruz, levando no coração como Ele a esperança da ressurreição. “Spe salvi”, salvos na esperança. Hoje podemos dizer: “Transfigurados na esperança”.
Dirigindo-nos agora em oração a Maria, reconheçamos n’Ela a criatura humana transfigurada interiormente pela graça de Cristo, e confiemos na sua orientação para percorrer com fé e generosidade o percurso da Quaresma.

                                               Papa Bento XVI, Angelus, Domingo, 17 de Fevereiro de 2008

Fonte: www.presbiteros.com.br

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